A História dá muitas voltas. E, durante essas voltas, acaba sempre por provocar desfechos inesperados, mas também ligar, num mesmo destino, personagens situadas em extremos opostos. É isso mesmo que parece estar a desenhar-se, nos últimos dias, com a linha (de desgraça) que começa a unir Lula da Silva ao sul-coreano Chun Doo-hwan, numa mesma maldição olímpica.
Enquanto líderes dos seus países, tanto o antigo operário metalúrgico brasileiro, que foi eleito duas vezes Presidente do Brasil, como o general que se tornou ditador da Coreia da Sul, através de um golpe de estado, foram obreiros de um facto singular: conseguiram que a organização dos Jogos Olímpicos fosse entregue a um país que, no momento dessa decisão, não fazia parte do lote dos mais desenvolvidos do mundo (o outro membro desse “clube” é o México, que acolheu os Jogos de 1968).
Foi Chun Doo-hwan que, em setembro de 1981, entregou formalmente a candidatura de Seoul aos Jogos Olímpicos, previstos para 1988. Era um dossiê que tinha herdado do anterior presidente, Park Chung-hee, assassinado em outubro de 1979, mas a que deu um impulso decisivo, como forma de legitimar internacionalmente o seu regime autoritário. Não era uma tarefa fácil, pois nem a Coreia do Sul nem o seu líder gozavam, à época, de grande simpatia no exterior. Chun era olhado como um militar golpista que dominava o país com mão de ferro: só nos últimos meses de 1980, mais de 60 mil opositores do seu regime tinham sido presos e enviados para campos de reeducação. A sua eleição como presidente também foi peculiar: convocou uma conferência nacional para a unificação, com 2525 delegados e ganhou com 2524 votos a favor (99,99% ). Só não foi unânime, porque houve um voto considerado nulo – mas há quem diga que essa foi a forma encontrada para se distinguir da inimiga Coreia do Norte, onde Kim Il Sung era sempre eleito com 100 % dos votos.
Os primeiros meses da presidência de Chun foram alucinantes: aboliu todos os partidos políticos, reprimiu violentamente os seus opositores, mas ganhou a organização dos Jogos Olímpicos, beneficiando, em muito, do facto de Seoul concorrer apenas contra Nagoya, no Japão, país que já tinha organizado os Jogos de 1964.
Bem mais renhida foi a eleição da cidade sede dos Jogos Olímpicos que vão decorrer, este ano, entre 5 e 21 de agosto. Reunidos em Copenhaga, nos primeiros dias de outubro de 2009, os membros do Comité Olímpico Internacional tinham que decidir entre quatro cidades de grande peso: Madrid, Tóquio, Chicago e Rio de Janeiro. Não existiam favoritos pré-anunciados e todas as candidaturas sentiam que podiam, até ao último momento, virar a maioria dos votantes a seu favor. Por isso, todas elas fizeram-se chefiar, nas alegações finais, por figuras respeitadas, com peso internacional: o rei Juan Carlos (com muitos familiares aristocráticos no colégio eleitoral) foi defender a candidatura de Madrid, o primeiro ministro japonês discursou em nome de Tóquio, enquanto os EUA e o Brasil enviaram os respetivos presidentes, Obama e Lula.
Quando muitos esperavam o “milagre Obama”, eleito para a Casa Branca há menos de um ano, ocorreu antes o “efeito Lula”: o brasileiro espalhou simpatia pelos corredores e mostrou todo o seu carisma num discurso que convenceu os sempre circunspectos membros do COI. O Rio ganhou e as fotos dos jornais do dia seguinte mostravam Lula agarrado à bandeira azul, amarela e verde, com Pelé, a festejar. Obama aceitou a derrota, concedendo que Lula era “o político mais popular do planeta”.
Era mesmo. E continuou a ser, mesmo depois de abandonar o Palácio do Planalto, em Brasília, no primeiro dia de 2011. Nos anos seguintes, acumulou prémios e honrarias, doutoramentos honoris causa e condecorações nos mais diversos locais do mundo.
Já Chun Doo-hwan não teve direito a esse estado de graça, depois de deixar a presidência. Nas vésperas dos Jogos Olímpicos, os sul-coreanos puderam ir livremente, pela primeira vez, às urnas e a situação do país alterou-se. A ditadura foi substituída pela democracia e, apenas um ano depois, em 1990, Chun foi obrigado a demitir-se dos cargos que ainda detinha, fez um discurso público a pedir perdão pelos seus crimes, e retirou-se para um mosteiro.
Em 1996, foi obrigado a sair do seu retiro para ser julgado pelo massacre na cidade de Gwangiu, ocorrido em 1980, em que centenas de estudantes foram mortos pelas forças militares. Condenado à morte, viu a pena ser perdoada no ano seguinte, pelo novo presidente, Kim Young-sam, num gesto para promover a reconciliação nacional. Foi libertado, mas ficou obrigado a devolver todo o dinheiro que, segundo o tribunal, teria roubado ao país durante os seus anos na presidência: qualquer coisa como 200 milhões de euros (ao câmbio atual). Mas, apesar dos esforços das autoridades policiais e fiscais da Coreia do Sul, não tem sido fácil encontrar o rasto do dinheiro e a maior parte dele ainda não foi devolvido. Chun diz que está arruinado e tenta manter-se o mais longe possível dos holofotes, nos últimos anos, resguardado na sua mansão no bairro de Yeonhui, em Seoul, sob proteção policial, paga pelos contribuintes sul-coreanos. A equipa especial criada pelo parlamento para tentar recuperar o dinheiro de Chun – muito dele aplicado em imóveis e empresas dos Estados Unidos – devia ter terminado o seu trabalho em 2013, mas o seu prazo já foi prolongado até 2020. Mantém-se, assim, o cerco a Chun Doo-hwan.
Um tipo de cerco que Lula da Silva começou a sentir também na pele, nas últimas semanas, e que o levou a refugiar-se novamente no Palácio Planalto – desta vez já não como o Presidente popular no Brasil e admirado no mundo, mas como um foragido que tenta escapar à justiça. Ou como um campeão olímpico apanhado com doping e que cai do pódium para o esquecimento. E a desilusão de todos.