
Lucília Monteiro
Para fazer pão, pão-verdadeiro, aquele com quatro eternos ingredientes, um pouco da massa de ontem será guardada para levedar e fazer crescer o pão de amanhã. É a coisa mais poética do mundo (da panificação) (e uma das do mundo em geral). Pois hoje descobri que a mesma lógica se aplica à reprodução humana e, com isso, reforcei a ideia de que não foi de barro que deus criou o homem. Foi de pão. E, ainda mais, que não foi o homem. Foi a mulher.
O pão é feito de farinha, água, sal e levedura. Apesar de no supermercado ter muitas outras coisas esquisitas e desnecessárias como “espessantes e melhorantes”. A gente é feita de carne, osso, cabeça e coração. Apesar de na realidade ter muitas outras coisas esquisitas e desnecessárias ao entendimento do meu ponto de vista, como o esternocleidomastóideu, que além do mais é difícil de escrever sem dar erros ortográficos.
O que eu não sabia é que, no caso das mulheres, a levedura já vem incluída e será essencial para a massa-mãe do amanhã. É que a mulher já nasce com todos os óvulos que terá na vida. Sendo que, por volta da vigésima semana de gestação, a pequena fêmea em formação já tem no seu interior a meia dúzia de milhões de óvulos a que terá direito. E que aliás perderá a grande velocidade até ao nascimento e depois até à puberdade e daí em diante, uma vez por mês, até à menopausa, que é o momento em que o stock chega ao fim e fechamos a fábrica (de pão).
Ora, perante esta informação, poderia ter ficado perplexa e fixada no terrível flagelo da finitude dos óvulos e do rápido declínio da fertilidade no velho país em que vivemos. Poderia ter pensado na minha condição de mulher do século vinte e um, que vai adiando a maternidade, enquanto olha para uma ampulheta gigante, cujos os grãos de areia são os óvulos que se vão gastando por fecundar. Poderia cair na tentação de invejar os homens e a sua grande produtividade ao nível da matéria-prima. Ou a consequente descontração perante o relógio-biológico alheio. Mas não.
Ao ler esta informação, apenas pensei no ciclo da vida, no ciclo do pão e no quanto sou grata por ser fêmea e fazer parte dessa grande cadeia de sangue, suor e hormonas. Barrigas e estrias. Leite e lágrimas. Tão subvalorizada pelos intelectuais, pseudo-estetas e outros pretensiosos que não sabem nada da vida com V grande e, muito menos, com V no meio das pernas.
Fiquei grata porque percebi que o óvulo de onde nasci foi, na verdade, criado dentro da barriga da minha avó, junto com a minha mãe. E que foi a barriga da minha mãe que, ao criar-me, criou também o óvulo que, se tudo correr bem e o relógio ajudar, se tornará a minha filha (e a sua neta). E que será a minha barriga que lhe dará os óvulos que, um dia, poderão transformar-se na minha neta e assim sucessivamente. Desde que a Terra tem bichos como nós, e até que deixe de ter (por culpa nossa, muito provavelmente).
Achei a coisa mais poética do mundo em geral e do nosso em particular, o facto de este ciclo, que muitas vezes consideramos no plano emocional e teórico, ser completamente concreto e biológico. Achei poético não criarmos os óvulos para nós próprias, mas antes, para nós próximas. Como um presente, que as mães criam para as filhas, numa espécie de cadeia matriarcal de sementes. Um enxoval genético por assim dizer. Achei poético sermos feitos de massa-mãe, como o pão, literalmente. E que, da mesma barriga, por cada filha, se crie a possibilidade de outras. Matrioskas.