Dia 21 de outubro. Londres.
Ofereceram-me bilhetes para ir ver o concerto do Bob Dylan ao Royal Albert Hall. Fiquei em casa do Afonso e da Bia, amigos meus desde sempre. Tiveram um rapaz há pouco tempo e a Bia está em Lisboa para poder ter a ajuda dos pais nestes primeiros meses. O Afonso estava cá hoje para me receber na sua nova casa, pouco tempo antes de embarcar para o Dubai em trabalho. Hoje estou por isso sozinho numa bela e confortável casa em Hamersmith e aproveitei para trabalhar um bocado. Das melhores coisas que há para fazer em Londres é ficar em casa a fingir que se é Londrino. Por volta das 21:00 peguei no meu “caderno preto de escrever” e saí para jantar qualquer coisa aqui nos arredores. Depois de jantar, a caminho de casa aconchegado neste princípio de inverno que já se sente, ouvi música ao vivo e resolvi entrar no Hamersmith Ram onde uma pequena banda formada por três músicos de três gerações diferentes parecia estar a dar o seu melhor para arrancar qualquer tipo de reação a um grupo de estudantes em conversas animadas numa das muitas mesas vazias do pub. Entrei, pedi uma “pint”, sentei-me e respirei fundo. Não que em Portugal eu seja o personagem mais conhecido da telenovela da noite, mas já não me sinto à vontade para sair sozinho para um bar de caderno em riste e ficar sossegado a um canto, incógnito, a escrever. No princípio fazia isso: muitas noites passei eu em casas de fado a roubar palavras aos poetas que me ensinavam a maneira de dizer a nossa língua a cantar. Muitas noites passei eu sozinho a absorver tudo à minha volta, secretamente, as pessoas, os gestos, as reações, a respirar tudo, a armazenar dos fadistas os ritmos e acentos e trejeitos, toda a informação possível que mais tarde, mal sabia eu, ia usar para compor.
A pandeireta acelerada e agressiva do músico de meia idade parece trazer a raiva de todos os anos em vão dedicados à música. Cantamos e tocamos todos com tudo o que temos. No fundo, somos todos iguais, os músicos, os músicos mesmo, não os que apenas tocam bem os instrumentos ou têm só uma grande técnica vocal, esses são apenas os bons técnicos; estou a falar de músicos, daqueles que acreditam na ideia de que a música é um barco que nos leva para os sítios certos, para sítios felizes. Há esta entrega, este prazer na entrega, pode ser num bar para sete pessoas ou num estádio para cinquenta mil. Claro que, quando a música acaba, o regresso às margens da realidade é sempre diferente…
Tão poucas palmas no fim da canção… são claramente desproporcionais à dedicação dos três músicos. O mais velho não se manifesta muito mas confesso que, com os seus cabelos longos e brancos e a sua barriga descaída a amortecer a guitarra elétrica, é o mais sábio dos três. Do alto da sua idade vai atirando pormenores coloridos para as canções escolhidas e profundamente interpretadas pelos outros dois. O mais novo, claramente o mais enérgico, começa a tocar o “All Along the Whatch Tower “ e a banda entra retribuindo a alegria de voltar ao “barco dos músicos de verdade” para se esquecerem que no fundo sou só eu, no meu sítio a escrever, que os está a ouvir. “ “There must be some way out of here”, said the joker to the thief “ e todos queremos ser o Bob Dylan e ninguém sabe que nem o Bob Dylan é o Bob Dylan. De certeza que tudo o que ele quer é poder ir a um bar beber uma “pint” sozinho e escrever como fazia no princípio. Aliás… agora que falo nisto… podia jurar que aquele indivíduo na mesa do canto de chapéu… não, se calhar não é.