Lisboa já foi desaparecida. Era a Lisboa inalcançável dos livros da Marina Tavares Dias. Aquela dos postais impossíveis, bela demais para continuar viva. Cantei sobre isso no meu disco Os Perdedores, de 2022. Na canção “Nem fome, nem mundo”, nomeio os lugares que percebi amar quando os perdi: o King, a Sol e Mar, o Londres ou o Estádio da Luz. A cada um que é nomeado ouve-se a voz samplada do meu filho Sebastião a perguntar “e agora pai?” E eu, sem saber muito bem a quem respondo, digo: “Acabou.”
Porém, o que sinto agora é outra coisa. Lisboa passou do lamento à náusea; e já nem sei se é da cidade ou de mim. O que resta é o silêncio depois do enterro, o zumbido da maquinaria, o cheiro a cimento fresco. Chamo a isso pós-melancolia: quando ter saudades em vez de doer, cansa. Já não se trata de querer o regresso do “genuíno”, mas de aceitar o estado civil de uma cidade pós-desaparecida, exaurida, resignada ao que resta de si própria.
Lisboa tornou-se um mau lugar para viver: um sítio caro, triste, onde o demasiado limpo e o demasiado sujo convivem sem se estranharem um ao outro. Uma monstruosidade ordeira, tresandando a sabão químico. Como se a cidade se tivesse transformado num desses serviços de internet, nos quais a menos que se tenha dinheiro para subscrever, estamos condenados a levar com os anúncios ubíquos, ciclópicos, indecentes.
Alguns, apanhados pelo acaso do tempo que lhes coube, compraram antes da febre de popularidade lisboeta ter alastrado pelo mundo. Deram uma ninharia por um apartamento na Estrela e venderam-no quatro vezes mais caro a brasileiros endinheirados. Lisboa foi o melhor negócio das suas vidas. E o pior para Lisboa. Dormem tranquilos, claro. E bem. Os que vieram depois de 2012, a menos que tenham dois milhões para dar por um T3, acordam nos subúrbios e sonham em partir. Que remédio.
Conheço um pai de uma dessas famílias inaceitáveis de tão numerosas que, num destes dias, foi admoestado pelo vizinho. A cena é trivial: pizas, gritos, sol, uma varanda. Os miúdos engalfinham-se entre mãos e facas e garfos e queijo derretido. Seis impertinências e oito irritações mais tarde — quando um homem já se enerva do próprio facto de estar enervado — o pai explode e manda dois berros. Talvez três, não interessa. É então que o vizinho aparece da janela em frente e sentencia “Monsieur, ça suffit!”. Assim mesmo, na língua de Baudelaire e de Montaigne. O pai cala-se. E a cidade suspiraria, não fosse ficar ela própria surpreendida por descobrir que, até ali, naquele bairro médio burguês igual a tantos outros, até ali estava o forasteiro. Foi como se as zangas de Lisboa já não lhe pertencessem.
Dizer que Lisboa está cheia de estrangeiros é tão trivial que já não ofende ninguém. O que resta é esta espécie de topografia do absurdo: os muito-muito-ricos, os muito-muito-pobres, e no meio nós, lisboetas, povo mitológico, espécie em vias de extinção. A tentar respirar no metropolitano às seis da tarde, fazendo contas para um folhado de salsicha e um Compal a sete euros no café da esquina. Sustendo a respiração para não ter de inalar o fedor a urina na Estação do Oriente. E se me lê do resto do País, aceite o conselho: não venha. Fique onde está.
Domingo há eleições autárquicas. Convém votar em alguém que faça do gesto um ensaio mínimo de utilidade plebiscitária. Alguém que não seja nem Moedas, nem Leitão.
O Moedas é aquele rapaz estudioso que passou a vida a querer ser popular. Depois de eleito passou o mandato a tentar resolver o trauma. Andou de causa em causa, como quem muda de gravata (caso as usasse), aproximando-se sempre daquilo que lhe parecia mais estiloso em cada momento. Abanou as bandeirinhas woke, acreditou nos unicórnios, depois deixou de acreditar nos unicórnios, e acabou a falar de segurança porque era o tema do dia. É um político que só sabe reagir ao que brilha. Tipo traça. O que para alguém que deve liderar é — digamos — curto. Está sempre um passo atrás do rumor, de dedo babado ao vento a tentar perceber para onde sopra o mundo. Numa espécie de situacionismo de quem já é a situação.
E depois há o oposto do Moedas. Ah, a Alexandra Leitão! A encarnação da bazófia. Um portento de confiança em si mesma. Óptimo para mandar bocas no parlamento e na televisão. Péssimo para a relação tu-cá-tu-lá do quotidiano local. É-lhe impossível fazer-nos acreditar que não passa de uma ministra disfarçada de vizinha. Das que acredita no Estado e desconfia do povo. Por isso ninguém a segue verdadeiramente; apenas a ouve (ouve?) com a piedade possível para a retórica socialista do costume. Não inspira, não perturba, não arde; assusta.
É tramado, eu sei. Também estou assim, sem fazer ideia em quem votar no Domingo. A cada um o seu inferno eleitoral, caro vizinho lisboeta. Amanhã é o dia de reflexão. Aproveitemos para contemplar as faluas do Tejo, as bicicletas vagando pela Almirante Reis, o lixo um pouco por todo o lado. Apesar de cada vez mais feia, Lisboa continua linda; claro. E, depois de desaparecida como nos postais de Marina Tavares Dias, ainda sobrevive. Nós é que já cá não moramos.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.