Pauline Kael, a lendária crítica de cinema da revista New Yorker, escreveu um dia que Citizen Kane “é o único filme americano que continua tão atual hoje como no dia em que se estreou”. Mal sabia ela que, meio século depois dessa declaração e mais de oito décadas após ter sido realizado, o filme de Orson Welles – que em Portugal ganhou o título de O Mundo a Seus Pés – ganharia ainda mais atualidade, com a ascensão fulgurante e controversa do multimilionário Elon Musk ao círculo restrito do novo poder em Washington, ao mesmo tempo que, freneticamente, procura influenciar os destinos de outros países.
Quando foi produzido, no início da década de 1940, ainda antes da entrada dos EUA na II Guerra Mundial, Citizen Kane pretendia ser, embora de forma cautelosa, um retrato da vida de William Randolph Hearst, o milionário que, ao comando de um império de jornais, rádios e revistas, revolucionou o clima mediático americano e influenciou, decisivamente, a opinião pública e a política. Muitas das frases proferidas no filme pelo personagem principal, o magnata Charles Foster Kane, eram facilmente atribuídas, na época, a Hearst, como atualmente, com as necessárias adaptações, poderiam ser ditas por Musk. “Se o corpo de letra do título for grande, a notícia passará a ser também grande”, dizia Kane, a explicar como conseguia manipular a informação a seu bel-prazer, só para criar impacto no público. Noutro momento, quando um seu repórter lhe comunica que está tudo calmo em Cuba, o magnata responde: “Providencia os textos, que eu providencio a guerra”, numa alusão a uma comunicação, autêntica, feita por Hearst, que teve um papel decisivo na eclosão da Guerra Hispano-Americana, ao publicar uma série de notícias sensacionalistas com o objetivo de acirrar a opinião pública contra Espanha e, em simultâneo, vender mais jornais. Finalmente, noutra cena do filme, quando ao regressar da Europa, Kane é confrontado por um batalhão de repórteres com informações contraditórias à sua narrativa, a sua resposta podia ser, nos dias de hoje, um tweet perfeito: “Não acreditem em tudo o que ouvem na rádio. Leiam o Inquirer” (o seu jornal).
Nestes momentos emblemáticos do argumento, escrito pelo genial e tempestuoso Herman J. Mankiewicz (que era visita de casa de Hearst…), estão sintetizadas algumas das características que fazem parte do atual manual de Elon Musk para usar a rede social X (antigo Twitter) numa máquina de propaganda ao serviço da sua agenda pessoal: sensacionalismo, criação de falsas narrativas, amplificação de falsidades e a proclamação, permanente, de que as pessoas não devem acreditar na imprensa de referência, porque a liberdade de expressão só existe na sua rede social.
Sem qualquer regulação nem transparência, o atual homem mais rico do mundo tem hoje um poder global muito superior ao de Hearst e até ao de Kane, interpretado por Orson Welles. Usa os mesmos métodos para atacar todos os que transforma em inimigos e utiliza meios muito mais sofisticados para criar as narrativas que mais lhe interessam. E tem também algumas semelhanças aterradoras. William Randolph Hearst, que tinha começado por ser apoiante dos democratas, foi um admirador confesso de Hitler, chegando a dar ordens aos seus repórteres para não o hostilizarem. Elon Musk, que começou por ser visto quase como um herói do desenvolvimento sustentável, acabou por se tornar quase um negacionista climático e, atualmente, faz campanha aberta pelo partido neonazi AfD, nas eleições de 23 de fevereiro na Alemanha. E distribui pontapés nas redes sociais contra os governos eleitos do Reino Unido e do Canadá, ao mesmo tempo que anuncia financiamentos milionários a dirigentes extremistas, como se fosse líder de uma qualquer internacional do caos.
Ao contrário do que sucedia com Hearst e Kane, Elon Musk tem uma ambição planetária (que poderá cimentar de forma colossal, caso acabe por comprar o TikTok americano, conforme foi ventilado nos últimos dias). E, através da ação decisiva que teve na campanha de Trump, conseguiu que, de repente, todos os multimilionários das grandes empresas tecnológicas estejam unidos na obediência ao Presidente – algo nunca visto na História dos EUA.
Em 1941, segundo ainda Pauline Kael, Citizen Kane foi um dos poucos filmes feitos dentro de um grande estúdio num clima de perfeita liberdade. A sua estreia foi, no entanto, boicotada pelos donos dos cinemas com receio das represálias de Hearst – que proibiu qualquer publicidade ao filme nos seus jornais. Será que hoje, oito décadas depois, alguém se atreverá a fazer algo semelhante, inspirado em Elon Musk? Quais seriam as consequências?
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