Na Antiguidade, o poderoso conceito de húbris (ou hybris) estava enraizado na cultura e trespassava nas histórias. Aos homens que se arrogassem ter confiança desmedida, arrogância ou presunção, desafiando a vontade dos deuses, o destino tratava de os recentrar, atirando-lhes uma fatalidade que os faria descer à terra. Este banho de humildade em forma de desaire, calamidade ou desgraça, chamado némesis, era recorrente nas tragédias gregas e romanas, e uma forma de ensinar o povo a não aspirar ser ou desejar mais do que aquilo para que estava destinado.
Em Portugal, este ano que está prestes a acabar tem sabor a némesis. Depois de uma primeira metade do ano de enlevação, em que tudo parecia correr de vento em popa, o verão trouxe a tragédia e o sofrimento. “2017, o ano da euforia e do desespero”, resumimos na capa. Cá estamos nós, portugueses, tão ciclotímicos como sempre fomos, a oscilar entre a alegria e a esperança exageradas e o desalento e a depressão desoladores.
Em maio, a Nação parecia inebriada com tanta alegria: Portugal, com o talentoso Salvador Sobral, ganhava, pela primeira vez na História, o Festival da Eurovisão; o Papa Francisco benzia um milhão de devotos peregrinos em Fátima; o Benfica voltava a ser campeão. As capas dos diários de 14 de maio mostravam um tríptico de êxtase nacional a fazer lembrar a velha máxima dos “três F”: deem-nos Fado, Futebol e Fátima, e ficamos felizes.
Até junho, todo o enredo estava a sair melhor do que a encomenda. António Costa conseguia garantir estabilidade política e levar a sua visão adiante, mantendo, com a sua habilidade política, um compromisso tranquilo com os partidos à esquerda. Mário Centeno conseguia ir mostrando números que já não se viam há muito, tirando o País do pântano financeiro e económico. Terminavam os procedimentos por défices excessivos e a economia ostentava novo vigor: em junho, batia-se palmas à criação de 130 mil novos empregos num ano – a maior subida em pelo menos 18 anos –, aos crescimentos do PIB em redor dos 3% e ao dinheiro a rodos que os turistas de visita injetavam no País.
Corria tudo bem… de mais, ouvia-se por aí. Que fizemos nós para merecer tanto, questionavam os cínicos de serviço. Se estivéssemos na Antiguidade, dir-se–ia que os Deuses se irritaram com tanto orgulho a roçar a insolência. Vocês portugueses nesse canto da Europa, baixem a bola. E depois da húbris, veio o pathos, ou o castigo. Veio o fogo, a morte a dor, veio a calamidade nacional que ceifou 110 vidas, 65 em junho e 45 em outubro. Desintegrou-se a imagem pública de um governo já abalado pelo escândalo das armas desaparecidas em Tancos, nasceu uma nova fase de relação política com um Presidente fiscalizador e interventivo, ficando para trás o Presidente facilitador.
Foi um ano “saboroso”, como disse António Costa na semana passada em Bruxelas? Nem por isso. O primeiro-ministro referia-se ao contexto europeu, é certo, mas por cá o adjetivo desgarrado caiu mal. Foi um ano muito mais ácido do que doce, e o amargo de boca que deixou estará bem presente no início de 2018.
(Editorial da VISÃO 1294, de 21 de dezembro de 2017)