Há acontecimentos que não podem ser esquecidos, que exigem ser lembrados como lição. Ainda para mais porque, ao longo dos últimos meses, se repetiram com frequência e sempre pelo mesmo motivo. Não é difícil rebobinar, neste caso, a fita do tempo. Basta recuar aos últimos seis, sete meses, e recordar uma série de notícias que nos foram entrando pela realidade adentro, quase sempre pela mesma razão: a de, na prática, continuarmos a recusar a evidência de que o clima está mesmo a mudar ou que, quando o admitimos, sermos incapazes de alterar quaisquer procedimentos organizativos para tentar aliviar as consequências dessa mudança. O caso dos combates aos incêndios é o paradigma perfeito dessa situação.
Independentemente do facto de as temperaturas globais aumentarem de ano para ano e dos principais estudos científicos alertarem para a inevitabilidade da ocorrência cada vez mais frequente de fenómenos extremos (como os grandes fogos florestais), Portugal continua a manter o calendário da proteção civil quase imutável. A chamada fase Charlie, em que se envolvem mais meios de combate e se proíbem atividades que possam atear fogos, é decretada, todos os anos, de forma automática, para o período entre 1 de julho e 30 de setembro, através de uma portaria publicada em Diário da República. Ou seja: um ato puramente burocrático, que se mantém igual todos os anos e indiferente aos sinais que o clima nos vai dando.
Claro que pode ser só coincidência, mas não deixa de ser uma coincidência trágica que a tragédia de Pedrógão Grande tenha ocorrido cerca de duas semanas antes do início previsto da tal fase Charlie (e só depois de se contarem os 64 mortos se tenha decidido, então, antecipar o período crítico do Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios para 22 de junho). Como também pode ser só coincidência – mais uma vez trágica – que depois de dois meses com um recorde de área ardida, mas sem vítimas mortais, se tenham voltado a contar mortos em incêndios neste princípio quente de outubro, precisamente depois de terminada a fase Charlie.
Teriam sido todas estas mortes evitadas se o sistema de defesa da floresta estivesse a funcionar na sua máxima força? Ninguém pode responder que sim nem que não. Mas o que este verão provou, à saciedade, é que não vale a pena continuar a pensar que o clima permanece igual ao que era há 20 ou 30 anos e é preciso encarar isso de frente. Os sinais da meteorologia têm sido dados, neste ano, de forma eloquente: tivemos uma das três primaveras mais quentes desde que há registos (e as anteriores foram as de 1997 e de 2011); o mês de junho foi o terceiro mais quente desde 1931, e o mês de setembro o mais seco de sempre.
Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, quando se olha para a história meteorológica do País nas últimas oito décadas, percebe-se que 6 dos 10 verões mais quentes ocorreram já neste século XXI em que vivemos. Esta desadequação do calendário burocrático e legislativo com o novo calendário climatológico teve também consequências dramáticas no Litoral. Basta lembrar, por exemplo, o “surto” de mortes por afogamento registado nas praias portuguesas nos meses de abril e de maio, quando os nadadores-salvadores ainda não tinham entrado em atividade nem existiam outros meios de prevenção ou salvamento nos areais. Ou seja, antes do início oficial da época balnear que, burocraticamente, continua a ser inaugurado, há décadas, no dia 1 de junho (salvo raras e honrosas exceções), embora cada vez mais os dados meteorológicos indiquem que o tempo seco e quente se tem alargado, com maior frequência e intensidade, ao período entre maio e outubro. E agora estamos também prestes a entrar oficialmente em seca extrema em grande parte do território. Algo que, na verdade, não vem em qualquer calendário nem costuma ser regulado em Diário da República. Mas que, sejamos sinceros, andava há muito a ser anunciado pelos cientistas como uma das consequências mais previsíveis das alterações climáticas na Península Ibérica. Era bom que nos preocupássemos mesmo com isso. Governar é também saber olhar para o tempo. Enquanto há tempo.
(Editorial da VISÃO 1284, de 12 de outubro de 2017)