Quem sabe? Giulio já deve estar morto, só pode, passaram quase vinte anos, dezanove se quisermos ser correctos e um cão não vive tanto tempo, se na altura fosse um cachorro talvez ainda hoje existisse, mas Giulio já não era cachorro quando o conheci, tinha vindo para Zanzibar com os donos cinco anos antes, portanto se agora fosse vivo teria por aí, no mínimo, uns vinte e quatro.
Eu não sabia nada do Islão, ninguém sabia nada do Islão, na altura era preciso viajar até um lugar com muçulmanos para reparar nos muçulmanos. Portanto, Giulio foi a minha primeira pedrada no charco das boas intenções do turismo como motor do progresso e dessa euforia que seguiu a queda do muro de Berlim e da propaganda do fim da História que Washington nos queria impingir. Giulio foi a primeira pedrada na minha cristalina crença sobre a disponibilidade dos outros para serem iguais a nós.
Os donos do Giulio tinham abandonado a Itália talvez por razões fiscais ou apenas para dar um abanão a uma vida banal, e decidiram abrir um restaurante em Zanzibar e foi por isso que os conheci, porque ia lá jantar. Eram cultos, elegantes e simpáticos como costumam ser os italianos donos de restaurantes fora de Itália, com uma reputação e um cliché nacional para manter.
No ar de Zanzibar paira sempre uma sugestão de cravinho e de outras especiarias, não sei se fazem de propósito para agradar os turistas, como na Provença com as plantações de alfazema, se calhar ninguém usa cravinho emZanzibar, comem mandioca e peixe frito quando há, querem lá saber do cravinho, querem é chegar à noite com qualquer coisa no estômago, a vida não é fácil e o país é pobre e a comida é escassa. No fundo da rua de cada aldeia miserável de Zanzibar está um resort de luxo e se calhar o cheiro do cravinho no ar vem dali. Quem sabe?
Os italianos tinham aberto o restaurante para trabalhar com turistas mas não se encontravam dentro de um resort, tinhamse instalado em plena Stone Town, a velha capital do comércio dos escravos, que na altura ainda não tinha sido classificada pela Unesco mas era na mesma um testemunho extraordinário dos encontros e desencontros das culturas do Índico. O restaurante estava pois no centro da ebulição religiosa, racial, política de Zanzibar, tudo cria tensão em Zanzibar, os séculos passam e o magma da violência borbulha sempre perto da superfície. Alguns turistas pressentem-no, a maioria não.
Os donos do Giulio não tinham um gato, tinham um cão. E a partir desse cão fiquei a saber que o Islão se dividia em duas metades: a que não se importa com cães; e a outra, a que considera o cão um animal maldito e a sua presença dentro de uma casa uma blasfémia e que interpreta o Corão de uma forma ortodoxa, linear, agressiva. Em Zanzibar, prevalece a segunda metade do Islão. Giulio e os seus donos eram insultados com regularidade quando saíam à rua. Eram italianos, encolhiam os ombros e seguiam em frente.
Os anos passaram, eu nunca mais voltei a Zanzibar, mas o fosso que separa a ficção que os resorts alegremente encenam, da realidade dos lugares onde eles se instalam, aumentou. Isso, eu fui sabendo pelas notícias. Um padre foi assassinado, outro baleado, um imã moderado queimado com ácido, duas voluntárias inglesas também, apoiantes políticos mortos em demonstrações em cada nova eleição. A miséria persiste, o desemprego é enorme, os salários irrisórios.
Suponho que Zanzibar, esse paraíso de praias brancas e brisa morna, continua a ser um mau lugar para possuir um cão, mas os turistas não levam os cães quando vão de férias. O cheiro do cravinho paira no ar, e não deixa sentir o cheiro do magma que borbulha sob a superfície.