Esta foi, seguramente, a questão que muitos de nós formulamos, quando soubemos que os três jovens influencers detidos e apresentados a juiz para primeiro interrogatório, indiciados de terem violado uma jovem de 16 anos e de divulgarem imagens do crime nas redes sociais, tinham ficado em liberdade.
Como é possível?
De acordo com o veiculado pela comunicação social (pois que desconheço totalmente o inquérito), a prova será evidente, pelo que não se compreenderia a opção por uma medida de coação não privativa da liberdade.
Diz a doutrina que o bem jurídico protegido com o crime de violação é o da autoconformação da vida e da prática sexual da pessoa, no sentido em que a vítima tem o direito de se determinar em matéria sexual, seja quanto às práticas, ao momento ou ao(s) parceiro(s).
Mas não é só isto.
O crime de violação vai mais além. É atentatório da própria dignidade da pessoa humana, destruindo a vida da vítima.
E é por isto que somos assolados por um sentimento de injustiça, quando ouvimos notícias como aquela.
Contudo, a aplicação de medidas de coação não se move por sentimentos, mas sim por princípios e condições de aplicação muito rigorosos.
Importa, antes do mais, esclarecer que o primeiro interrogatório judicial de arguido detido não é um julgamento, nem tem como finalidade punir os agentes pelos factos que se encontram fortemente indiciados. Dizer-se que os jovens ficaram impunes é prematuro. Teremos de aguardar pela sujeição dos arguidos a julgamento e pela decisão do tribunal. Só nesse momento, caberá ao julgador, quando tiver de escolher e determinar a medida da pena, ter em conta, entre o mais, as necessidades de prevenção geral, ou seja, utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa) e incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).
Ora, as medidas de coação têm natureza e finalidades completamente diferentes. Visam satisfazer exigências cautelares, exclusivamente processuais, que resultam da verificação de perigos, taxativamente previstos no artigo 204.º do Código de Processo Penal, consubstanciados em factos concretos e objetivos.
A aplicação das medidas de coação deverá, também, obedecer aos princípios previstos nos artigos 191.º a 195.º do Código de Processo Penal e artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, dos quais destacamos, os princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, bem como o da subsidiariedade de medidas privativas da liberdade (obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva).
Posto isto, o juiz de instrução terá de verificar se, em concreto, existe perigo de fuga (perigo real e iminente que resulta dos factos conhecidos no processo, não poderá ser meramente hipotético); perigo de perturbação da aquisição, conservação ou veracidade da prova no decurso da investigação; ou perigo de, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Da leitura atenta do artigo 204.º do Código de Processo Penal, claramente percebemos que o conceito de “alarme social” não foi incluído pelo legislador como um dos fundamentos da aplicação das medidas de coação em geral e da prisão preventiva em particular. Este conceito foi afastado da generalidade das legislações processuais penais, e também não integra a legislação nacional desde que, em 1 de janeiro de 1988, entrou em vigor o novo Código de Processo Penal.
Na verdade, este conceito é vago, impreciso, manipulável, desconforme, portanto, com o direito processual penal de um Estado de Direito Democrático, enquanto fundamento de aplicação das medidas de coação, pois desvirtua a sua natureza cautelar e processual.
Muitas vezes, alude-se a este conceito para fazer referência ao perigo de “perturbação da ordem e tranquilidade públicas”.
Explicando: o que se pretende não é acalmar a população, mas sim acautelar um perigo, em concreto, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido.
Assim, tal perigo deve ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido, nem à reação que o mesmo pudesse gerar na comunidade.
As medidas de coação não visam punir os arguidos que ainda nem sequer foram formalmente acusados, não visam prevenir a prática de crimes e muito menos servir de um exemplo para terceiros.
Qualquer finalidade de natureza retributiva, preventiva (ou mesmo de proteção do arguido) é considerada ilegítima e, portanto, proibida.
Aguardemos que se faça justiça no julgamento!
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