Parece que, de repente, os problemas da adolescência voltaram a estar na ordem do dia! Para os professores e auxiliares, que lidam com eles em grupos de vinte e muitos – ao mesmo tempo – numa sala de aula, ou às centenas nos intervalos dentro de uma escola pública, nada de novo.
Na primeira reunião deste ano letivo, a diretora de turma disse-nos isto: Este aluno tem problemas psiquiátricos graves e pode ser perigoso. Não convém contrariar… E agora, pensei? Na verdade, este aluno problemático não está só. Pelo contrário, está inserido numa turma de outros tantos alunos problemáticos, difíceis, com graves problemas de comportamento, de socialização e de aprendizagem, crises de identidade, comportamento agressivos, etc… Há muito que temos vindo a alertar para as frequentes faltas de educação, de valores e de empatia pelo outro, para a irresponsabilidade crescente, para a dependência dos telemóveis, para a agressividade latente, para a apatia e, em última instância, para a quase total importância atribuída à escola e aos professores.
As minhas aulas de Português do secundário começaram e desde então tem sido um duro e constante desafio. Como lidar com V., um sujeito adolescente de dezasseis anos, que diz ser de extrema-direita e que quando vem até mim, marcha pela sala como se fosse um militar do exército de Hitler, murmurando cânticos que ninguém percebe? Ou o que fazer quando P., numa aula, decide colocar a cabeça sobre os braços e ali ficar, pedindo para não ser incomodado. Ou quando C. se dirige a uma colega acabada de chegar de Angola, de telemóvel em punho, mostrando-lhe um gorila? Ou quando F. manda um colega, auxiliar ou professor para aquele sítio? Ou quando A., à pergunta sobre se eu gosto de ser professora me responde: Eu quero ser polícia para atirar com os cães às pessoas…
Dos processos judiciais dos nossos alunos, pouco ou nada sabemos. A lei de proteção de dados impede que os professores que com eles lidam diariamente tenham conhecimento da verdadeira realidade. Não há informação, aconselhamento ou estratégia… Temos de recorrer ao nosso bom senso, à nossa experiência e aos nossos conhecimentos pedagógicos e relacionais para, com o jogo de cintura adequado, lidar com estes alunos. E são tantos. Cada vez mais e mais…
O J. assumiu-se, logo na primeira aula e perante todos, como gay. Até aqui tudo bem, não fosse a sua linguagem e os seus gestos desmesuradamente abertos, contando a quem quiser ouvir, o que faz pelas casas de banho da vida. Já o A., chegado de um país francófono, pede-me encarecidamente que lhe dê uma nota de dez valores ou a minha mãe dá-me uma carga de porrada, stora, afirma. E eu não duvido. Mãe solteira, do pai pouco ou nada se sabe e tem dois filhos adolescentes que mal sabem pensar, quanto mais falar e ou escrever em língua portuguesa.
A M. usa umas calças largas e umas t-shirts de tamanho XL que lhe escondem parte do corpo. Tem o cabelo cortado à escovinha com uns desenhos que não consegui ainda decifrar. Tem uma namorada cuja atividade nas redes sociais controla diariamente através da posse das respetivas palavras passe. A M. vem a todas as aulas mas não se digna fazer absolutamente nada. Não gosta da escola. Não gosta das matérias. Não gosta dos professores. Não gosta de ler. Não gosta de escrever. Não gosta de falar em público. Só gosta dos seus telemóveis. E tem três. Como tem também negativa neste segundo período a seis das sete disciplinas do seu décimo ano de escolaridade e uns olhos azuis lindos e profundamente tristes.
A N., calma e meiga, parece um rapaz. Mesmo possuindo um nome feminino na lista, demorei algum tempo a identificar-lhe o género. Sofre desalmadamente por amor e, no dia seguinte ao S. Valentim, confessou que tinha pedido namoro à S. mas que esta tinha recusado porque não estava certa do que queria. Essa mesma, a S., confessou-me ser pansexual. Eu desconhecia o termo e tive de ir pesquisar. O A. vem de uma família de etnia cigana em que nenhum dos seus familiares estudou. Nas composições que tenta escrever, sem parágrafos e repetindo sempre as mesmas palavras ao longo do texto, fala-me amiúde de Deus mesmo que o tema não o peça (e nunca pede). A verdade é que acaba sempre por meter o seu Deus nos textos que me escreve sem qualquer pontuação.
O V esteve internado vários dias porque numa luta à porta da escola esmurrou um colega que, no momento certo, lhe partiu o nariz. Voltou só ontem com o seu nariz renovado, dizendo a todos Ai stora, se eu o apanho… E vai apanhá-lo. Sabemo-lo todos, dentro ou fora da escola. O S. chegou ao décimo ano, ao abrigo do célebre DL 54, sem sabe ler ou escrever. Possui sessenta por cento de incapacidade e está inserido numa turma do décimo ano de um curso profissional onde não faz absolutamente nada porque nada consegue fazer. O L. trouxe uma faca da cozinha para a escola que exibiu num intervalo. A sua encarregada de educação relativizou o acontecimento dizendo-nos que o filho está habituado a ver o pai correr atrás da mãe pela casa com uma faca na mão, mas é tudo na brincadeira, stora. A N. sofre de violência doméstica. O T. falta sempre ao primeiro tempo da manhã e a mãe diz-nos, em tom de desespero: não consigo acordar o meu filho de manhã.
Depois existem os vários mantras dos jovens adolescentes de uma escola pública, repetidos até à exaustão: os palavrões ditos sem medo, à boca grande, dentro ou fora da sala de aula, pelos corredores… Confesso que ainda me incomodam. E que ainda ouso repreendê-los, sejam meus alunos ou não, sujeitando-me a ser humilhada. Mais uns anos e pressinto que estarei como quase todos os outros colegas: cega, surda e indiferente…
Todos sabemos a pouca importância dada pela sociedade ao professor nos dias que correm. Porém, onde quer que nos esteja a ler, acredite nisto que lhe digo: ser professor neste contexto é um desafio diário difícil e a maior parte das vezes causador de grandes perturbações. Só um professor perfeitamente equilibrado e seguro consegue gerir esta multiplicidade de sujeitos e de situações que coexistem num espaço escolar em geral e, na sala de aula, em particular. Basta um pequeno desequilíbrio por parte do professor, uma mensagem pouco clara, uma atitude mais agressiva e o caos instala-se, com resultados imprevisíveis para todos. Que ninguém se surpreenda, por favor, quando um professor que trabalha neste contexto diário necessitar de um atestado médico…
Hoje, a sala de aula como eu a conheço, é um quadro deprimente de alunos adormecidos ou de olhar vago, viciados num telemóvel que não querem (ou não conseguem) largar, desprovidos de toda e qualquer curiosidade e para quem a escola é desmotivadora, monótona e sem qualquer interesse. Dirão os mais céticos que isto é um exagero. Talvez seja, se falarmos de escolas públicas mais ou menos de elite, situadas em bairros privilegiados. Se for uma escola localizada num território educativo de intervenção prioritária como a minha, este cenário tende mesmo a piorar. Na verdade, a minha sala de aula de hoje em dia reflete o contexto sociocultural desestruturado, desinformado e apático da maioria das famílias destes adolescentes que a frequentam.
O que fazer, então? Como motivar estes jovens para as aprendizagens? Só vejo mesmo uma solução: dar autonomia aos professores para desestruturar o currículo como o conhecemos, articulando-o com a dura realidade destes tempos difíceis de mudança, relacionando-o com a vida real, mostrando-lhes que as línguas, a literatura, a matemática, as ciências… são a própria vida. Porém, para que isto aconteça, seria necessário que os alunos lessem. Para começar, seria mesmo necessário que soubessem ler. Ou falar. Muitos deles soletram as palavras como se estivessem ainda nos primeiros anos de escolaridade, numa aflitiva dificuldade de leitura. Outros, destroem as palavras lidas, incapazes de compreender o que elas dizem ou, na maior parte das vezes, olhando-as pela primeira vez. Por estes dias, pedir um sinónimo a um aluno e consegui-lo, revela-se um acontecimento digno de ovação.
O que fazer, então? Como levar até ao fim e na posse de plena capacidade psicológica esta missão que é ensinar estes jovens adolescentes? Salvam-nos ainda o genuíno gosto de ensinar, o espírito solidário entre os professores que, como eu, andam há mais de três décadas – na maior parte das vezes – a ajudar jovens a encontrar um caminho e, obviamente, ajudam-nos também, e muito, os diretores das escolas que, pouco a pouco, têm percebido e valorizado a importância do capital humano e pedagógico de excelência, condição sine qua non para continuar a salvar jovens nesta verdadeira guerra que todos travamos diariamente em muitas escolas públicas de território educativo de intervenção prioritária.
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