No passado dia 13 de janeiro, no Supremo Tribunal de Justiça, teve lugar a sessão solene de abertura do ano judicial que, desde 2013, corresponde ao ano civil.
Tomaram da palavra a bastonária da Ordem dos Advogados, o procurador-geral da República, a ministra da Justiça, o presidente da Assembleia da República e por fim, o Presidente da República, em cumprimento, aliás, do que se encontra previsto no artigo 27.º na Lei de Organização do Sistema Judiciário,
Em uníssono, todos fizeram votos para que 2025 fosse um melhor ano para a Justiça! Que assim seja!
Renovamos os “desejos de ano novo” do senhor procurador-geral da República, de mais magistrados, de mais funcionários judiciais, de domínio da gestão dos dados informáticos e de autonomia financeira para o Ministério Público. São quatro pilares que nos parecem imprescindíveis à boa atuação do Ministério Público e à cabal realização da justiça.
Com agrado, ouvi a senhora ministra da Justiça assinalar a perda, em 2024, de uma das melhores mulheres da justiça portuguesa, Joana Marques Vidal, antiga procuradora-geral da República. Faço minhas as suas palavras. Mas o mais impactante do seu discurso foi, sem dúvida, a referência a Alcinda Cruz, mulher de 46 anos, morta pelo marido a golpes de faca e tesoura, à frente dos filhos. Destacou que havia uma queixa apresentada em 2022 e “arquivada no ano seguinte”.
Sem pretender falar do caso concreto, pois que o desconheço completamente, permitam-me deixar-vos a visão de quem, todos os dias, tem de tramitar inquéritos de violência doméstica e decidir sobre a acusação ou arquivamento dos autos.
A maioria destes inquéritos começa com a denúncia da vítima e são obrigatoriamente instruídos com instrumentos de avaliação do Risco de Violência Doméstica (ficha de avaliação de risco e subsequentes fichas de reavaliação de risco), o qual poderá ser classificado como baixo, médio ou elevado. Tais relatórios são fundamentais, permitindo fazer uma triagem dos casos que demandam uma atuação imediata.
Impõe a diretiva n.º 5/2019, da Procuradoria-Geral da República que, imediatamente após ao registo e autuação do inquérito por crime de violência doméstica, a secretaria pratique oficiosamente (sem necessidade de despacho) uma série de atos processuais (pesquisas de outros inquéritos pendentes ou arquivados, antecedentes criminais, etc.), que permitirão ao magistrado do Ministério Público titular obter um conhecimento mais abrangente do caso que tem em mãos.
Na verdade, na sua primeira intervenção processual, o magistrado titular deverá, num prazo curto, que não excederá 72 horas, diligenciar pela prática de atos que o habilitem a tomar de medidas de proteção à vítima e à promoção de medidas de coação relativamente ao arguido.
Acresce que o Ministério Público deverá promover, com a maior brevidade possível, a tomada de declarações de memória futura, especialmente, em situações de avaliação de risco elevado ou médio se assim entender, evitando fenómenos de revitimização.
Contudo, a gravíssima carência de oficiais de justiça e a falta de magistrados do Ministério Público não permite dar a célere resposta que se pretendia. Note-se o caso da SEIVD (Secção Especializada Integradas de Violência Doméstica) do Porto, onde os funcionários são metade do que seria exigível (em vez de 2 por magistrado apenas existe 1 por magistrado) e os magistrados do Ministério Público encontram-se a acumular serviço de outros colegas em falta.
Mas, afinal, porque são arquivados os inquéritos pela prática de crime de violência doméstica?
A prova rainha destas investigações é, indubitavelmente, o depoimento da vítima, a que acrescem os depoimentos de familiares e outras testemunhas (vizinhos, amigos), bem como exames periciais, prova eletrónica e digital e outros elementos documentais.
Concluída a investigação, cabe ao Ministério Público decidir sobre se prossegue ou não com o processo para julgamento, sendo que arquiva o inquérito quando, entre o mais, entender não terem sido recolhidos indícios suficientes da verificação de crime.
Perguntamos: Como é possível concluir pela insuficiência de indícios, se tínhamos uma denúncia tão clara? Então o crime de violência doméstica não é um crime público? Não era suposto a vítima não poder desistir do procedimento criminal?
Sim. De facto, o crime de violência doméstica é um crime público o que significa, grosso modo, por um lado, que não é necessário haver uma queixa formal da vítima (podendo ser um terceiro a apresentá-la) e, por outro lado, que a vítima não pode “desistir da queixa”, ao contrário do que acontece, por exemplo, num crime de furto, dano ou ofensa à integridade física simples.
Contudo, a prova dos inquéritos é dinâmica e carreada de acordo com as regras processuais previstas nos diplomas legais, em especial, no Código de Processo Penal.
Importa aqui ter presente o disposto no artigo 134.º do Código de Processo Penal que permite que possam recusar-se a depor como testemunhas, entre outros, o cônjuge do arguido ou quem com ele tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação, bem como pais, filhos, irmãos e cunhados dos arguidos.
O legislador entendeu que as pessoas mais intimamente relacionadas com o arguido não são obrigadas a um depoimento incriminatório contra o mesmo, mesmo que sejam as vítimas. Esta norma serve não só para proteger as relações de confiança e solidariedade, essenciais à instituição familiar, como também para proteger a própria testemunha / vítima do conflito de consciência que poderia sentir ao ter que optar entre contribuir para a incriminação de pessoa que lhe é ou foi muito próxima e, a fim de evitar esse contributo, mentir e com isso cometendo ela própria um crime.
Muitas vezes sucede que a vítima ou familiar que denuncia os factos constitutivos da prática de crime de violência doméstica vem mais tarde a usar da faculdade prevista neste artigo e decidir não prestar depoimento.
E tal vontade tem de ser aceite pelo processo penal.
É que, conforme decorre dos artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro (Estatuto da Vítima), à vítima é assegurado, em todas as fases e instâncias de intervenção, tratamento com respeito pela sua dignidade pessoal (princípio do respeito e reconhecimento) e toda a intervenção junto daquela está limitada ao respeito integral da sua vontade (princípio da autonomia da vontade).
Note-se que o direito de recusa de depoimento é tão importante que existe uma corrente jurisprudencial que defende que as declarações para memória futura (já prestadas em fase de inquérito) não podem ser valoradas, em julgamento, por força do artigo 356.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, caso a vítima vá a julgamento apenas para se recusar a depor (entendendo-se que apenas assim se efetiva a tutela do direito de recusa a depor e de não contribuir para a condenação do arguido com quem tem vinculação familiar).
Portanto, aquela prova que nos parecia muito forte no início do inquérito, esbate-se, sendo que os restantes elementos de prova, por si só ou mesmo que conjugados entre eles, poderão ser (consoante os casos) parcos para indiciar a prática do crime de violência doméstica e obter a condenação do arguido em julgamento.
Mas impõe-se sublinhar que este arquivamento do inquérito em processo penal tem uma característica fundamental que o distingue de uma absolvição em julgamento.
Se o arguido for absolvido em audiência de discussão e julgamento nunca mais poderá ser julgado novamente por tais factos. Falamos de caso julgado e do princípio constitucional non bis in idem (artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa). Enquanto que um inquérito arquivado está sujeito à cláusula rebus sic stantibus (enquanto a prova se mantiver a mesma), significa isto quepode ser “reaberto”, caso surjam novos elementos de prova (ou a vítima pretenda falar), conforme dispõe o artigo 279.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Importa, por fim, destacar que mesmo que o inquérito seja arquivado por falta de indícios, o magistrado titular pode decidir que o procedimento de reavaliação do risco se mantenha, sempre que as necessidades de proteção da vítima o imponham e esta expressamente requeira a manutenção do estatuto de vítima.
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