É premissa cultural generalizada que as mulheres são faladoras. Estão sempre em contacto umas com as outras. Fazem comentários sobre tudo e todos, são tagarelas, enchem o silêncio com palavras muitas vezes desprovidas de conteúdo. Mas, a verdade, é que raramente partilham as suas angústias e tristezas íntimas sobre “assuntos femininos”, o que leva a que muitas passem pela mesma dor e dúvidas de forma isolada e só.
Se durante a puberdade e adolescência a menstruação é assunto recorrente, quase uma ostentação de maturidade – e até porque justifica faltas às aulas de educação física -, a verdade é que, com a idade, estrogénios e progesteronas ficam fechados numa caixa a sete chaves e raramente são aflorados. As irregularidades do ciclo e as dores menstruais ainda geram conversa entre amigas e colegas; os métodos contracetivos supostamente são abordados na escola; as primeiras experiências sexuais podem ser confessadas a amigas próximas; mas, a partir daí, facilmente se entra num secretismo solitário.
Refiro-me a temas que podem mesmo ser tabu: a infertilidade, os abortos – espontâneos ou provocados -, as agruras da gravidez, as sequelas do parto, a maternidade não esplendorosa, o suplício da amamentação, a deformação do corpo, a menopausa, o envelhecimento. E a falta de líbido, a anorgasmia, o desinteresse sexual. A perda de identidade com a fusão dos vários papéis de mulher, mãe, cuidadora, trabalhadora, doméstica, estudante, cônjuge. E o impacto de todos estes temas é ampliado se se tratarem de mulheres pertencentes a grupos minoritários.
Sou médica há 15 anos. Durante a faculdade, estes assuntos foram estudados sobretudo sob a perspetiva orgânica, mas não foram verdadeiramente debatidos. Não sou obstetra, mas há mais de 10 anos que faço uma consulta especializada com doentes que passam por abortos (espontâneos) de repetição e a verdade é que, até há pouco tempo, não tinha a real noção do que é passar por uma perda gestacional. Felizmente continuo sem ter, mas uma amiga, em conversa de esplanada, teve a coragem de verbalizar aquilo por que passou, quase de forma gráfica. E isso ajudou-me a ajudar outras mulheres. Porque um aborto é muito mais do que uma menstruação. Porque o paracetamol não chega para as dores da expulsão. E é muito raro falar-se disso. As perdas são guardadas em segredo, com vergonha.
A infertilidade é outra temática complexa. É algo escondido pelo casal, como um ato de fracasso. Se importa não fazer perguntas desconfortáveis por parte de familiares e amigos, também é importante haver diálogo entre o casal e o médico assistente. A procriação medicamente assistida tem de ser desmistificada. É cara, é verdade, mas o Sistema Nacional de Saúde ainda consegue dar alguma resposta. E é premente pedir ajuda, porque, convenhamos, o tempo avança e a biologia não está do nosso lado.
Aqui, temos também as muitas mulheres solteiras, ainda em idade fértil, angustiadas por não encontrarem um parceiro passível de ser pai dos seus filhos, enquanto o mundo à volta delas gira, os amigos procriam e elas ficam para trás. O congelamento de óvulos é também uma opção pouco divulgada, que pode contribuir para reduzir a angústia da espera e da solidão.
Depois há o mito da gravidez como estado de graça. Ora, as gravidezes não são todas iguais, mesmo numa mesma mulher. Ninguém nos prepara para o cansaço inexplicável, os enjoos, os vómitos, a azia, os inchaços, as hemorroidas, a incontinência, as candidíases, o sono, a apatia, a insónia, a tensão mamária, o apetite voraz, as dores abdominais e pélvicas em sítios que nunca imaginámos que existiam, a lentificação do raciocínio e as falhas de memória, a labilidade emocional. E há aqui uma enorme falta de compreensão generalizada. Porque, embora as mulheres não falem umas com as outras sobre estes temas, podem ser rápidas no gatilho do julgamento. Frases como “A gravidez não é doença”, “Eu trabalhei até à véspera de entrar em trabalho de parto”, “Já tive 3 filhos e nunca me queixei” geram estigma e ampliam o sofrimento de quem não se sente encaixada na aura de felicidade flutuante atribuída à gravidez. Eu própria me senti ambivalente e alienada nos primeiros meses de gestação, em que hormonas, desconforto e cansaço geraram um cocktail nada inebriante ou agradável.
Depois do parto, nem todas as mulheres sentem uma explosão de amor e imediata identificação com o recém-nascido, o que acarreta uma grande culpabilização. Mas isso é normal. As variações hormonais não são iguais em todas, o corpo está dilacerado e exausto, e a montanha russa de sentimentos não tem um comando ou interruptor. A amamentação pode também ser um processo duríssimo, sendo certo que os conselhos e dicas facilmente variam entre as muitas especialistas no tema – sejam profissionais ou familiares.
Toda a vivência da maternidade é altamente subjetiva, mas o cansaço é um denominador comum à maioria das mães. Tenho doentes em que a sobrecarga de trabalho doméstico levou mesmo à descompensação de doenças crónicas de base, tendo justificado intervenção multidisciplinar junto das respetivas famílias. E a maioria destas situações não é reconhecida sequer pelas próprias.
A menopausa é também um período conturbado e muito pouco abordado. O corpo volta a mudar de forma radical, novamente com circuitos de emoções descontrolados. As terapêuticas sintomáticas não são igualmente seguras e eficazes e o impacto na qualidade de vida das mulheres nesta fase da vida pode ser também debilitante e facilmente incompreendido. O envelhecimento é algo que não gostamos de abordar, de todo, enquanto sociedade.
Cada um destes assuntos é extenso e merece reflexões separadas. Temos de ser mais compreensivas connosco próprias e aprender a pedir ajuda. E não, não precisamos de anunciar a nossa vida publicamente, mas tenhamos a coragem de partilhar as nossas feridas e mazelas, para ajudar a prevenir, ou mesmo cicatrizá-las, noutras mulheres. Porque, por muito cliché que possa parecer, juntas fortalecemo-nos.
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