Isto está tudo a rebentar por todo o lado. É a frase que mais tenho ouvido de colegas e enfermeiros, um pouco por todo o lado.
Em fevereiro deste ano, em Espanha, saíram à rua centenas de milhares de pessoas; em França, foram 2 milhões em grandes manifestações pelo sistema público de saúde. E por cá?
Continuamos a assistir ao progressivo encerramento de diferentes valências hospitalares nos serviços de urgência – Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria, Pedopsiquiatria, Ortopedia, Oftalmologia, Otorrinolaringologia -, com sobrecarga e diminuição da capacidade de resposta das que se mantêm abertas. Continuamos a assistir à saída de especialistas altamente qualificados todos os meses para o sistema privado. E digo continuamos, assumindo a nossa dupla posição, enquanto profissionais e enquanto utentes. E digo assistimos, porque é tudo o que temos vindo a fazer, enquanto comunidade, enquanto população, ante o desmoronar do Serviço Nacional de Saúde.
Já todos sabemos que a pandemia arrasou estruturas já de si frágeis e deixou diferentes hospitais e centros de saúde à beira da rotura. Por muitas voltas que se deem, as listas de espera para consultas e cirurgias continuam demasiado longas e a resposta continua escassa e demorada. O panorama geral está sempre a piorar.
No entanto, é sabido, e tido como dado adquirido, que o SNS dá sempre resposta a situações críticas. E que as unidades de cuidados intensivos vão sempre absorver os doentes do privado quando o plafond do seguro acaba. E que as urgências vão sempre receber os doentes que o 112 sinalizou, incluindo casos graves que exigem resposta rápida, como os enfartes, os AVCs, os acidentes de viação. Acreditamos comodamente que o SNS vai sempre dar resposta a tratamentos oncológicos, transplantes, partos complexos, cirurgias altamente diferenciadas ou seguimento de doenças raras. E que vai ter sempre um Plano Nacional de Vacinação. E que vai estar sempre ali, para muitos como último recurso.
Uma boa parte dos portugueses tem seguro de saúde e sente-se confortável com isso. Tem a possibilidade de escolher um médico para cada consulta de especialidade, com a brevidade desejável, conseguindo exames e cirurgias num timing adequado à sua situação. Como é suposto acontecer. E não seria suposto ser assim também no SNS?
Todas as semanas temos doentes que se queixam de pedidos de exames feitos há 3 meses, 6 meses, ou mesmo mais, que ainda não foram realizados. E já se sabe que isto atrasa diagnósticos, atrasa tratamentos, o que depois vai agravar os prognósticos – e aqui incluem-se, por exemplo, os cancros. Doutora, isto é inadmissível. Fez reclamação? Não. Pois, aí tem.
Estamos a perder médicos, enfermeiros e técnicos especializados, seja para o estrangeiro, seja para o sistema privado, seja para outra vida, fora da área da saúde, por absoluta exaustão. E claro que tudo encrava a partir daí. Os serviços deixam de dar resposta e tudo se vai acumulando – excepto a saúde dos doentes. E não, não adianta abrir mais vagas e faculdades, porque isso só vai baixar a qualidade do ensino e saturar um mercado de trabalho que devia ser tudo menos uma questão de negócio – quer mesmo um médico/enfermeiro/técnico low cost a tratar de si? Temos de ter bons profissionais no SNS e isso não pode ter preço.
Mas volto a tudo aquilo a que assistimos. A toda uma população de utentes, uns mesmo doentes, outros apenas potenciais doentes, a assistir de forma passiva à desestruturação do SNS, à deterioração de um sistema que nos serve a todos e que está a rebentar por todos os lados. E que não, não terá sempre capacidade de responder às situações críticas em que todos confiam. Que dificilmente aguentaria outra pandemia.
Nunca tivemos tanto acesso a informação. Temos uma massa crítica apurada, opinativa, rápida no dedilhar de comentários em redes sociais e por essa internet fora. Mas onde é que ela está para defender aquilo que é de todos? Onde estão os movimentos de cidadãos? Há muitas formas de evidenciar a falta de recursos e de resposta, de fazer pressão, de reivindicar a qualidade dos serviços, de lutar contra esta implosão iminente. É urgente salvar o SNS, independentemente do modelo de reestruturação. Os profissionais de saúde têm alertado, e vão continuar a fazê-lo, mas é preciso que os utentes também se manifestem. É tempo de defender o que é nosso. A Patti Smith cantava e é preciso acreditar: People have the power.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.