Há uns meses, numa das suas raras intervenções públicas, Pedro Passos Coelho aceitou o convite para apresentar um livro chamado Identidade e Família, com organização de António Bagão Félix e Paulo Otero (entre outros) e contributos de vários autores. Alguns dos textos poderiam, com facilidade, ser conotados como sendo conservadores, passadistas e moralistas. Hoje, esse livro já ficou esquecido na espuma dos dias, mas, na altura, sem se perceber bem porquê, o seu lançamento foi bastante mediatizado.
Na Livraria Buchholz, em Lisboa, onde decorreu o lançamento, estava Nuno Melo, então recém-empossado ministro da Defesa, e André Ventura, líder do Chega, que acabara de conseguir uma vitória estrondosa nas eleições legislativas. Passos Coelho tinha alguns soundbites preparados para a ocasião que ajudaram à polémica. Recorreu, nomeadamente, a expressões de outros tempos para denunciar o que entende ser a “sovietização do ensino”. “As famílias precisam de ser ajudadas na educação dos filhos, mas dificilmente o conseguiremos com uma espécie de sovietização do ensino, com uma determinada perspetiva que não é a da maioria da sociedade e muito menos das famílias”, disse o antigo primeiro-ministro e líder do PSD.
Já depois disso, no congresso do PSD que se realizou em Braga, em outubro, também Luís Montenegro regressou ao tema. Foi um congresso sem história e, por isso, uma das notícias principais acabou por ser o facto de o primeiro-ministro ali ter defendido a revisão dos conteúdos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. Montenegro justificou que se trata de uma “das bandeiras que interessam à população portuguesa” (!). “Vamos reforçar o cultivo dos valores constitucionais e libertar esta disciplina das amarras a projetos ideológicos ou de fação”, rematou.
Felizmente, o assunto estava, por ora, posto em sossego. Até que, na semana passada, no Parlamento, houve quatro projetos de lei e de resolução do Chega, Bloco de Esquerda, CDS-PP e PAN. Inicialmente, foram todos rejeitados, mas o PSD ‒ que primeiro se absteve na votação do projeto do CDS-PP ‒ acabou por votar a favor, o que permitiu aprovar a resolução que visa “retirar o conteúdo ideológico” do currículo da disciplina.
Houve uma reviravolta, mas não há aqui equívocos nem mal-entendidos. Montenegro, político talentoso e experiente, sabe perfeitamente que a Cidadania e Desenvolvimento é uma das bandeiras do Chega ‒ que não só aproveita tudo quanto lhe cheira a trincheira como tenta cavalgar guerras culturais e questões identitárias. A aproximação dos partidos de direita democrática aos temas prediletos das direitas radicais tem acontecido pela Europa fora e, por isso, esta posição do PSD pouco tem de nova ou de inédita. Se a estratégia beneficiará o PSD ou se o afastará de forma irremediável da sua matriz fundacional, só o tempo o dirá.
Também não há aqui inocentes, convenhamos: todos sabemos que, aos críticos implacáveis da Cidadania e Desenvolvimento, o que interessa é a sexualidade e a igualdade de género. Ninguém quer saber de direitos humanos, de literacia financeira ou mediática, de segurança rodoviária, de educação ambiental ou de empreendedorismo (tudo matérias que constam do vasto programa da disciplina). Também é verdade que a política ‒ tal como, em certa medida, o jornalismo ‒ é feita de antagonismos mais ou menos artificiais (se assim não fosse, diga-se de passagem, seria uma grande chatice…).
No debate polarizado entre a esquerda e a direita, a Cidadania e Desenvolvimento está transformada em arma de arremesso. Mas basta ter algum contacto com escolas para perceber que a disciplina está longe de ser uma prioridade para alunos, professores e pais. O apelo com que termino é, por isso, genuíno e sincero: podem pôr gelo nos pulsos, deixar os miúdos em paz e, por uma vez na vida, ir incendiar para outro lado?
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