Sabendo nós o que sabemos sobre a indústria cinematográfica de Hollywood, é mais do que provável que esta história dê um filme – a realidade, infelizmente, supera sempre a ficção. Recordemos os factos: na última segunda-feira, 9, no estado norte-americano da Pensilvânia, foi capturado Luigi Mangione, um homem de 26 anos, suspeito da morte do diretor-executivo da seguradora UnitedHealth, Brian Thompson, atingido à queima-roupa, à porta do hotel Hilton, em Manhattan, em Nova Iorque, na semana passada.
Após uma caça ao homem que durou cinco dias, o suspeito – que entretanto já foi acusado de homicídio, falsificação de documentos e posse ilegal de armas – foi visto a comer num restaurante da cadeia McDonald’s por um empregado que o achou parecido aos retratos divulgados pela polícia. Mangione deixou um manifesto de três páginas a condenar a indústria dos seguros, que segundo ele põe os lucros acima da prestação de cuidados de saúde. “Estes parasitas merecem-no”, terá escrito. De acordo com vários meios de comunicação, também gravou “negar”, “defender” e “depor” em cartuchos de balas encontrados na cena do crime. As palavras remetem para o título de um livro muito crítico das seguradoras, publicado em 2010, Delay, Deny, Defend: Why Insurance Companies Don’t Pay Claims and What You Can Do About It, da autoria de Jay M. Feinman.
Na própria noite da captura, houve manifestações contra a indústria junto ao McDonald’s de Altoona (a fotografia que ilustra estas linhas é disso um exemplo). Em conferência de imprensa, o governador da Pensilvânia, o democrata Josh Shapiro, apressou-se a condenar a resposta online que obtiveram os crimes cometidos por Mangione, graduado em Engenharia e em Ciências Computacionais na Universidade da Pensilvânia, uma das instituições mais prestigiadas do mundo. Shapiro explicou que entende as frustrações das pessoas com o sistema de saúde dos EUA, mas advertiu: “Não matamos pessoas a sangue-frio para resolver diferenças sobre políticas públicas nem para exprimir um ponto de vista. Em alguns cantos sombrios, este assassino está a ser aclamado como um herói. Ouçam-me: ele não é um herói. O verdadeiro herói desta história é a pessoa que, esta manhã, no McDonald’s, ligou para o 911.”
Mangione cresceu no Maryland, viveu em São Francisco e, mais recentemente, em Honolulu, no Havai, onde esteve a trabalhar remotamente. Para matar, terá usado uma arma-fantasma, isto é, uma arma cujos componentes são comprados online, sem número de série e, por isso, muito difícil de rastrear. Quando foi preso, tinha consigo uma arma impressa em 3D e um silenciador. Nos últimos seis meses, deixou de comunicar com a família e com os amigos e, entretanto, já há relatos de que estaria em sofrimento físico, com uma lesão nas costas.
Nada apontava, portanto, para que Luigi Mangione fizesse o que parece ter feito. Os preconceitos são sobretudo pré-conceitos, ou seja, considerações prévias, baseadas em mentiras e em pressupostos, não raras vezes, sem qualquer adesão à verdade. Um jovem de boas famílias, formado numa das melhores universidades do mundo, pertencente à Ivy League, pode ser um criminoso – sob o manto diáfano de uma causa justa, atirou a matar. Antes de ser transformado num filme de Hollywood, do caso da morte trágica de Brian Thompson já é possível tirar umas quantas lições. A primeira delas é a de que, neste lado do Atlântico, os europeus não podem deixar de valorizar os seus sistemas de saúde, baseados no princípio da universalidade. Mas a segunda também é a de que a revolta, propagada pelas lógicas facilitistas dos algoritmos, não pode ser uma arma. A não ser que queiramos regressar ao estado teorizado por Thomas Hobbes em Leviatã, em que “o homem é o lobo do homem”.
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