Há várias décadas, ler era considerado um hábito quase elitista. O acesso a livros – ferramentas fundamentais na promoção do pensamento – costumava ser restrito aos poucos e grandes centros urbanos, sendo apenas procurados por aqueles que ousavam arriscar ter opiniões próprias em tempos dominados por ditaduras e autocracias, inimigas naturais de qualquer forma de raciocínio crítico.
O resultado era um mercado diminuto, limitado ao topo da pirâmide social, que ligava escritores e leitores da restrita alta burguesia global. Aqueles que liam tinham à disposição um número minúsculo de títulos – menos de dez mil por ano, aproximadamente, na primeira década do século XX.
À medida que o mundo se abriu e se liberalizou, as taxas de analfabetismo caíram e as cadeias produtivas do mercado editorial tornaram-se mais acessíveis. Tudo mudou. Embora não haja dados exatos, estima-se que mais de 50 mil livros foram publicados, por ano, no início da década de 1990 – um número que nunca deixou de crescer.
Mas foi nos anos 2000, com a popularização da Internet e o poder concedido a qualquer pessoa de publicar o seu próprio livro sem custos, recorrendo à autopublicação, que tudo mudou drasticamente.
Em 2007, por exemplo, um total de 407 mil livros foram publicados – dos quais 123 mil, pouco mais de ¼, foram autopublicados. Em 2023, essa figura muda de forma ainda mais radical: dos quase quatro milhões de novos livros editados no ano passado, 75% foram autopublicados.
São dados que transformaram o próprio mercado editorial em algo completamente novo, incomparável ao que existia nas décadas passadas. No passado, poucos livros disputavam as prateleiras de poucos leitores: em 1906, eram lançados, anualmente, apenas seis novos livros para cada milhão de pessoas. Já em 2023, foram lançados 500 livros novos para cada milhão – 83 vezes mais.
Mais pessoas a ler indicam um maior interesse pelo livro e pela circulação de ideias que ele carrega – o que, por sua vez, impulsiona o volume de novos escritores que, hoje, conseguem publicar sem custos e vender as suas histórias no formato que preferirem (impresso, ebook ou áudio).
A literatura, portanto, deixou de ser um hábito restrito e elitista, como provam pesquisas após pesquisas que registam o aumento de leitores em praticamente todos os países do mundo. Pelo contrário, a literatura moderna é absolutamente democrática, feita por quem quiser, sob um leque temático que varia desde manuais generalistas de autoajuda até estudos ultra específicos de civilizações remotas, passando por ideários revolucionários diversos, múltiplos dogmas religiosos, amor, erotismo, biografias de conhecidos e desconhecidos, e ficções dos mais inimagináveis géneros.
Graças à autopublicação, vivemos hoje num mundo onde todos escrevem sobre tudo, nos mínimos detalhes, abrindo um universo de opções tão vasto que é praticamente impossível não haver um livro ou mesmo um género inteiro que não se conecte visceralmente ao gosto mesmo do leitor mais exótico e exigente.
O que significa isso para todos nós? Que, embora ainda não haja uma fórmula para prever o futuro da humanidade, é pelo menos reconfortante saber que os nossos destinos estão a ser moldados por sociedades cada vez mais letradas, pensantes e, consequentemente, críticas.
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