Queres ir tomar um café?
Queres ir jantar lá a casa?
Vamos ao cinema logo?
É muito provável que, ao longo da vida, tenha recebido ou formulado um (ou vários) destes convites. São corriqueiros, mundanos, comuns entre colegas, pessoas próximas ou que estão ainda a conhecer-se. Pelo contrário, aposto que nunca se dirigiu a alguém perguntando “consentes em tomar café?”.
Sabemos como inquirir sobre a vontade e desejo de alguém – e sabemos como a expressão dessa vontade é tão diferente de, meramente, autorizar ou consentir. Apesar dos esforços para resignificar o consentimento sexual como entusiasta, sabemos que “querer” e “consentir” não são sinónimos (há boas razões para que não nos lembremos de um pedido de casamento formulado como “consentes em casar comigo?”). Com frequência, somos impelidos a consentir sem vontade ou entusiasmo. Consentimos, por exemplo, nas condições contratuais que assinamos com entidades comerciais, na recolha e tratamento de dados; damos consentimento informado a intervenções médicas, etc.
Voltemos aos exemplos iniciais: um café, um jantar ou uma ida ao cinema. Pensemos em como respondemos quando algum destes convites se afigura desconfortável – quer porque queremos evitar a pessoa que os dirigiu, quer porque simplesmente não nos apetece nenhuma das atividades. É possível que, em algumas circunstâncias, digamos simplesmente “não” ou “não quero”. Contudo, esse não é o padrão habitual de resposta nas interações sociais. Pelo contrário, é muito provável que já tenhamos dito algo do género:
Hoje não posso, talvez para a semana?
Sim, temos de combinar…
Agora não me dá jeito. Combinamos depois.
Este código de interação é relativamente simples: dizer “não” é muitas vezes lido como hostil e indelicado. É, sobretudo, desnecessário: as competências sociais mais básicas fazem com que percebamos as hesitações, respostas equívocas, subterfúgios e protelamentos, como recusas e manifestações de desinteresse ou indisponibilidade. A verbalização de um “não” é, aliás, dificultada em situações onde relações de poder acrescentam constrangimentos: porque não queremos ferir suscetibilidades, magoar a outra pessoa, provocar desconforto, ou até colocar-nos em dificuldades ou perigo, por temermos retaliações.
Acrescentemos, a esta dinâmica, a dimensão de género: as mulheres são ainda socializadas para o cuidado e a suavidade no trato, sendo a assertividade das mulheres lida como agressividade. Mulheres assertivas são com frequência lidas como masculinas, mandonas ou arrogantes, pelo que exigir um “não” redondo contraria a lógica da socialização a que são sujeitas desde a infância.
Serve tudo isto para dizer que, quando falamos de ética e liberdade sexual, o slogan “não é não” está longe de ser uma fasquia suficiente. Não apenas porque não reflete as dinâmicas comuns da interação, mas porque exclui tantas outras situações. Dizer “não” não é possível a toda a gente, em todas as circunstâncias: há situações em que as vítimas de violência sexual se encontram incapazes de dizer “não”, seja por medo paralisante, por antecipação das consequências, por inconsciência momentânea ou incapacidade permanente, entre outros fatores.
Dizer que “não” tem muitas vezes consequências, numa cultura que normaliza a violência sexual: gerar animosidade ou hostilidade por parte do parceiro; suscitar represálias por parte de quem insiste; pôr em causa a segurança física e/ou emocional de quem resiste.
Esperar ou exigir um “não” é, com frequência, irrealista. É, sobretudo, um exercício de escrutínio das vítimas: põe o ónus na reação de quem é alvo de comentário, conduta ou toque sexualizado indesejado, ao invés de escrutinar o comportamento abusivo e os seus autores. O slogan “não é não” falha em corrigir uma cultura de permanente escrutínio e culpabilização das vítimas de violência sexual.
É certo que reconhecer que “não é não” é um avanço face à muito antiga (e persistente) crença que o “não” das mulheres é performativo (a velha ideia que as mulheres dizem “não” quando na verdade querem dizer “sim”). Respeitar um “não” como recusa inequívoca – e não como um apelo a mais avanços ou persuasão – é basilar. Contudo, deixa muita coisa de fora: a expressão de hesitação, de medo, de dúvida, a não-resposta, o imobilismo, são igualmente linhas de fronteira.
O “não é não” não basta: é um patamar mínimo, incapaz de garantir relações livres de coação. Da mesma forma, um “sim” verbalizado num contexto de medo, coação, pressão, insistência ou manipulação para qualquer prática sexual não é uma expressão de vontade ou entusiasmo. Só um “sim” livre é válido, pelo que fórmulas alternativas como “sim é sim” são igualmente problemáticas e simplistas.
Falar de consentimento, na esfera da sexualidade, não nos pode bastar: queremos relações livres, mutuamente satisfatórias, plenamente queridas – e não meramente consentidas. Em vez de procurar expressões de recusa, devemos procurar expressões positivas, manifestações expressivas de vontade, desejo e entusiasmo na interação sexual (que, tal como a recusa, não têm de ser necessariamente verbais). O consentimento não chega: queremos liberdade sexual.
O sexo deve ser um encontro de liberdades, e não mais um dever, uma tarefa ou expectativa a cumprir. Concessão, cedência e capitulação não podem ser o horizonte de relações livres, voluntárias e desejadas. Querer é muito mais do que consentir; vontade e autorização não são termos permutáveis. A pergunta crucial não é se a outra pessoa consente, mas antes: aquela pessoa quer ter sexo connosco? É livre para o querer? E nós?
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.