João Lourenço foi o primeiro a encenar um texto de Peter Handke (1942), Prémio Nobel da Literatura 2019, no nosso país, ainda nos anos 70, precisamente Insulto ao Público, um espetáculo “muito marcante na época”, como recorda. E a partir daí, nunca deixou de acompanhar a obra do escritor austríaco, romancista, dramaturgo, guionista e realizador, e a “visão do mundo” que carreia. Por isso entende que esta é a peça que “melhor retrata toda a sua trajetória literária”: “É uma viagem de Handke no tempo, um sonho acordado, um regresso às suas origens na Caríntia, na Áustria profunda, e convoca para o palco os seus antepassados”.
O nome da peça, Tempestade Ainda, cita uma didascália de Rei Lear, de William Shakespeare, e condensa “a sua visão histórica, a ideia de um passado sempre presente”, adianta João Lourenço: “Uma tempestade que não sai de cima de nós, como ele diz, ‘Paz na Terra é impossível’”. E ao voltar ao tempo dos seus antepassados, situando-se a peça no final dos anos 30, visa procurar entender essa circunstância histórica e não apenas pessoal. “A história da sua família torna-se naturalmente um espelho da História mundial”, salienta. “Ele faz parte de uma minoria eslovena na Caríntia, porque a mãe vivia lá, e esses eslovenos ousaram ser a única resistência armada contra o nacional-socialismo, na Alemanha”.
É também um “regresso ao país da sua juventude”, um “país dos sonhos”, e o espetáculo cruza todas as facetas e anseios, refletindo sobre “os caminhos que temos de fazer para sair desta tempestade. Tanto mais importante quando a guerra continua a ensombrar e causar tanto sofrimento na atualidade. Tudo isso torna a peça muito presente”, sublinha João Lourenço, “como se houvesse uma projeção nos nossos dias. No fundo, resume todas as preocupações que Handke tem e que acho que todos temos. É um apelo à reflexão sobre o que se está a passar”.
Por outro lado, João Lourenço realça a “poesia tocante” que Peter Handke transmite “através das falas das suas personagens” em Tempestade Ainda. “Fascinou-me poder ouvir esse texto em palco, porque a sua poesia só se realiza quando os atores a incorporam”, observa. “E poucas vezes os intérpretes têm oportunidade de poderem criar as suas personagens com um texto com esta carga poética”.
A interpretação é de João Pedro Vaz, Crista Alfaiate, Sérgio Praia, Luís Barros, Carolina Picoito Pinto, Mia Henriques, Manuel Sá Pessoa, Susana Arrais. E além da encenação, também o trabalho dramatúrgico de Vera San Payo de Lemos procurou sublinhar esse sentido poético. A natureza da própria peça implica, de resto, que cada versão cénica seja única, diferente. “A Vera fez uma tradução fantástica, porque conseguiu dar em português essa poesia para os atores a transmitirem. Eu sou o elo de transmissão”, afirma ainda o encenador, que fez também a cenografia. “E tentei criar metaforicamente a paisagem que Handke tem na cabeça”.
Para celebrar os 50 anos do 25 de Abril no Teatro Aberto, de que é diretor, João Lourenço vai levar à cena, no próximo ano, o romance Os Memoráveis, de Lídia Jorge.