Na semana em que cumpriu 90 anos, no final do ano passado, escreveu 90 haikus, assim, de repente, como quem deita cá para fora o que há muito vinha acumulando num depósito de poesia.
E é mesmo assim que Luísa Freire escreve: sem planeamento, nem projeto, seguindo a intuição. De uma palavra que lê, de uma imagem que vê, de um pássaro que passa, de uma folha que cai, como exemplifica, pode surgir um poema.
E com ele outros até formarem um livro. A rapidez com que escreve um poema só encontra paralelo com a facilidade com que compõe um livro. Pode passar muito tempo sem escrever, meses até, mas quando a escrita a domina tudo flui. Talvez essa sensação explique os muitos inéditos, livros inteiros, que guarda na gaveta.
Alguns, 26, estão a ser agora publicados, nos dois volumes de poesia inédita a que deu o título de Atravessar o Frio, uma edição da Assírio & Alvim. O primeiro volume, já nas livrarias, cobre os anos de 2011 e 2017, abarcando o segundo o período que vai de 2019 a 2023. É uma oportunidade única para conhecer uma poeta discreta, de escassa publicação.
Nascida em Castelo Branco, em 1933, Luísa Freire só publicou o seu primeiro em 1979, Da Raiz à Fronde, recolhendo aí poemas escritos entre 1973 e a data de lançamento da estreia. Antes, formou-se em Filologia Germânica, em Coimbra, e começou a dar aulas no ensino secundário.
Seguiram-se outros livros, até 1985 – Na Pausa da Espera, Estar, Amor e Sempre, Verde-Nunca –, mas o envolvimento com a arca pessoana relegou os seus versos para um pousio forçado. Traduziu os poemas ingleses que Fernando Pessoa escreveu ao longo de toda a vida, dedicou-lhe o mestrado e um longo ensaio (Fernando Pessoa – Entre Vozes. Entre Língua) e só voltou a publicar já este século. Em 2003, saiu Imagens Orientais / Imagens Acidentais, com haikus seus e de Bashô, Buson, Issa e Shiki, e Ciclo da Cal.
Em 2009, O Tempo de Perfil revelava, pela primeira vez, o que ia escrevendo para gaveta (considera-se uma poeta com ‘arca’, mas sem espólio). E antes de Atravessar o Frio, e assinalando também os 50 anos de percurso literário, contados a partir de 1973, lançou os títulos Imagens e Cadernos A4, ambos em 2022, e já este ano o poema dramático Monólogo para uma Janela no Escuro e Folhas Breves, com os tais 90 haikus.
Apaixonada também pela pintura, hoje tenta dizer mais com menos, numa concisão que tanto apela às ideias, como se deixa seduzir pelas imagens.
Não é habitual uma poeta publicar, num único volume, 13 livros de inéditos de uma só vez, anunciando outros tantos para o segundo tomo. Quis assinalar em grande os seus 90 anos e 50 de vida literária?
Sim, de certo modo. Há essa coincidência de datas, o segundo volume desta poesia inédita vai até 2023, quando completei 90 anos. E acho que comecei a escrever “a sério” em 1973, já com 40… Mas não incluí nesta poesia inédita todos os livros que tenho por publicar, pois não condiziam com o conjunto. Um deles foi um volume de tercetos.
Além destes 26 livros inéditos, tem mais? Sabendo do seu passado pessoano, podemos falar de uma pequena arca?
Sim, sim, há mais. Tenho inéditos, mas não tenho espólio. Quando não gosto de um poema (ou de uma versão) deito-o para o lixo. E quando acabo um livro também vai para o lixo tudo o que não teve lugar nele. Não deixarei cá nada além de cada título individual.
É muita poesia inédita…
Tenho 60 livros escritos que considero acabados. Houve uma oportunidade, entre 2017 e 2019, de publicar dois livros de prosa poética e três de terceto, cem para cada um, a que chamei Instantes 1, 2 e 3. Mas essa possibilidade não se concretizou.
Mas por que razão acumulou tantos livros inéditos e não os publicou ao longo do tempo?
Como no caso daqueles três, houve oportunidades que não se concretizaram ou não apareceram. E eu também não fiz muito por isso. Parti do princípio que os livros estavam feitos, cá os deixava. Se tivessem de ser revelados postumamente também não haveria problema. O que eu agora disse ao Vasco David [diretor editorial da Porto Editora e editor da Assírio & Alvim], foi: já que vi o primeiro volume desta poesia inédita, gostava de ver o segundo [risos].
Estou a imaginar o Vasco David a perguntar-lhe se teria um livro inédito para publicar e a responder-lhe: um não, vários…
[risos] Ele sabia que eu tinha muitos para publicar. Quando lançámos O Tempo de Perfil, em 2009, que também já revelava muitos livros inéditos, havia outros na gaveta. Tem sido realmente muita escrita. Foram 50 anos de vida literária bem aproveitados.
Saber se seria publicada nunca foi importante nessa escrita contínua?
Esse é um processo independente. Escrevo para mim. Também, possivelmente, para algum leitor que me queira ler, mas nunca penso em publicar quando escrevo. Vou registando coisinhas pequeninas do dia a dia, pensamentos, ideias ou palavras que depois dão a um poema.
É a sua conta-corrente?
Sim, faz parte do meu dia-a-dia. E houve uma fase, nos anos 80 do século passado, em que escrevi tanto, tanto, tanto que se tornou quase um diário. Mas desse tempo deitei muitos poemas fora, quase 500. Eram muito repetitivos, justamente por essa proximidade entre poesia e diário.
Numa nota de apresentação a esta poesia inédita, diz que este primeiro volume versa mais sobre a ideia de “voz” e de “escrita”…
Há um tema comum que une os vários livros: as diferentes linguagens. Tenho muitos poemas sobre música, pintura e escrita: são várias vozes e linguagens, incluindo a gestual e a dos bebés. Foquei-me nesses anos um pouco nessa temática. A partir de 2019, que aparecerá no segundo volume, a minha poesia surge mais conotada com o mundo, com tudo o que foi acontecendo. Há vários poemas referente à pandemia, às várias guerras em que estamos metidos e também a perdas pessoais, como a morte do meu marido. Mais mundo e realidade.
Alguns pintores usam a ideia de série para explicar por que razão pintam, durante um determinado período, um certo tema. Também se pode aplicar à sua poesia?
Abordar o mesmo tema é uma coincidência. A minha poesia surge de instantes, do que aparece, de uma palavra que depois dá origem a um poema. A atenção às linguagens é fruto dos meus interesses, da muita música que oiço, do meu gosto pela pintura, que também pratico. Tudo isso fez com surgissem livros especiais sobre esses temas, não foi nada planeado. Quando acho que um livro acabou, dou-o por terminado. E depois o próximo pode ter uma temática semelhante ou completamente diferente. A única característica comum que reconheço na minha poesia mais recente é ser cada vez mais sintética, condensada, na procura de dizer em pouco espaço.
Na verdade, a sua poesia nunca foi torrencial.
Sim, nunca foi longa. Mas está cada vez mais curta. Talvez também seja uma influência dos haikus de que gosto muito, estudei bastante e cultivo.
O que gosta nessa concisão?
O haiku baseia-se nos sentidos, são essencialmente visuais ou auditivos. Quando o poeta oriental capta imagens ou sons, tudo fica fora das ideias. Pelo contrário, nós, ocidentais, não nos conseguimos abstrair, apenas ouvir ou ver, temos sempre de associar qualquer coisa. Talvez se deva à omnipresença das quadras, que ouvimos desde pequenos, que são pequenos sonetos, com uma introdução e uma conclusão. Não chamo de haikus aos tercetos que referi há pouco porque neles já há um pensamento, uma ideia, uma reflexão. Tenho tendência para uma poesia sentenciosa, um pouco conclusiva.
Com este primeiro volume de poesia inédita, estamos perante vários livros. Como é que ele se formam? Quando sente que tem um concluído?
É um processo intuitivo. Há sempre um momento em que, com os poemas que tenho, sinto que o livro se fechou. Não tenho um projeto, como se faz nos romances. Por vezes, passo meses sem escrever e, depois, um livro surge numa semana ou duas. Mesmo quando não escreve, o poeta está a escrever.
Vai captando e pensando. Na altura certa, as coisas que surgem já lá estavam. No meu caso, primeiro escrevo à mão e só depois passo para o computador. O que não me parece merecedor de ficar no livro, é destruído. Não existe. O livro vai-se afinando nas impressões e nas revisões que faço. Mas, como disse, é tudo intuitivo, não obedece a um trabalho ou a uma pesquisa, a ver o que fica melhor aqui ou ali. Até porque emendo muito pouco.
Por que razão deu o título de Atravessar o Frio a esta poesia inédita?
Foram 12 anos difíceis a vários níveis, no mundo e na minha vida. Muitas perdas. Os meus amigos morreram praticamente todos. Quando se chega a esta idade, já se tem pouca gente que partilhou connosco uma vida, momentos ou amizades.
“A poesia é sempre em diferido. Nunca por estar triste ou contente. Agarro no papel e escrevo. É sempre o depois, passado a tempestade, o que fica do vivido“
Essas perdas puxam mais pela poesia?
No meu caso, não. Para mim, a poesia é sempre em diferido. Nunca por estar triste ou contente. Agarro no papel e escrevo. É sempre o depois, passado a tempestade, o que fica do vivido.
Também é assim quando escreve sobre o que acontece no mundo?
Interessa-me muito as pessoas na sua relação com o mundo, as reações. Até os noticiários, que impressionam sempre. E sobre tudo isto se escreve, depois, em qualquer altura, não necessariamente logo, em resposta.
Uma vida tão longa também lhe permite conjugar vários tempos.
Sim, sim, e muitas experiências. Atravessei a nossa ditadura e fui contemporânea da II Guerra Mundial, que o meu pai acompanhava através da BBC e das notícias do Fernando Pessa. Um dos livros que sairá no segundo volume é precisamente sobre as mudanças que tenho visto no mundo, incluindo as climáticas e os desafios ecológicos.
Uma das características da sua poesia é a diversidade de registos. Interessa-lhe a experimentação?
Muito. Tenho versos e poemas longos (mas não muito) e curtos. Só não escrevo sonetos.
Não gosta?
Estou vacinada contra eles. Como qualquer adolescente, fiquei fascinada pelos sonetos de Florbela Espanca. E depois li muitos de Camões, Almeida Garrett e Antero de Quental. Quando cheguei à geração de Orpheu, e sobretudo à poesia de Fernando Pessoa, assim como à de outros autores, jurei que nunca escreveria sonetos.
Um espartilho demasiado apertado?
Sim. A poesia, para mim, é liberdade. Escrevo versos sem rima, mas o ritmo está lá. E o ritmo é muito importante, seja na prosa poética, seja na poesia. Infelizmente, é uma dimensão da escrita que se está a perder nos mais novos. Talvez lhes falte o Camões lírico e tudo o que se seguiu. A história da poesia que se lê e estuda fica no ouvido e comanda o ritmo quando se escreve. O verso branco sem ritmo não é nada.
É a diferença entre a simplicidade e o simplismo…
Pois… Eu gosto muito de coisas simples, de uma poesia pobre, que vive da imagem, sem luxos. Porque há um estilo pomposo que me irrita [risos].
Como foram as suas primeiras tentativas poéticas?
Não sei situar bem. Guardo um caderno de 1946, com uns poemas de caligrafia muito bonita… Mas é o único texto antigo que guardo. Sempre gostei de letras, mas não sei dizer o que me levou, aos 12 anos, àquele caderno. Na verdade, nem foi o início de uma dedicação à escrita, apenas de leitura intensa. Passei inclusivamente pela faculdade se ter esse impulso criativo, que só chegou com a meia idade.
Esteve esse tempo todo a a escrever sem escrever, como dizia há pouco?
Referi essa expressão para os anos mais recentes. Mas se calhar nessa altura também escrevia sem o saber. Foi um tempo muito ocupado pela profissão, os filhos para criar, as solicitações do dia-a-dia. Não houve o espaço que a poesia requer.
O que mudou nos anos 70 para que a poesia tenha encontrado esse espaço?
Não sei porquê, nem como, mas resolvi que ia escrever. E comecei. Foi assim tão simples. Hoje já não me identifico com os primeiros quatro livros que publiquei. Mais tarde, encontrei o nome que adotei para a escrita – Luísa Freire – e tudo se tornou mais regular.
Os anos 80 foram anos de grande produção…
Foi o tempo em que mais escrevi. Mas depois comecei a trabalhar com o espólio do Pessoa e a traduzir os seus poemas ingleses. Aí houve uma escrita mais espaçada porque a tradução implica um envolvimento e uma emoção tal que, por vezes, inibe a produção própria.
Qualquer coisa que eu escrevesse parecia Pessoa, tão grande era o seu impacto e influência. Revejo-me numa frase que li num dos livros do Alberto Manguel: a tradução é a mais fecunda leitura da obra de um escritor. Não há outra maneira. Deixamos de ser nós, para sermos outro.
Como se deu o encontro com Pessoa?
Quando vivia em Elvas traduzi alguns poemas ingleses do Fernando Pessoa. Mais tarde a Teresa Rita-Lopes soube disso e convidou-me para continuar esse trabalho, até porque na equipa dela, na altura, não havia ninguém de estudos anglísticos, eram todos de românicas. Ao fazer o meu mestrado sobre a obra pessoana inglesa, abriram-se as portas à minha colaboração, que resultou num primeiro volume de traduções, em 1985, nos três volumes com toda a poesia inglesa e no ensaio Fernando Pessoa – Entre vozes, entre línguas.
O que se pode descobrir nesse Pessoa inglês menos conhecido?
As preocupações e as obsessões do poeta maduro já estão nesta poesia inglesa inicial. Serão tratadas depois primorosamente na língua portuguesa. Mas mesmo numa poesia mal alinhavada como é a do Alexander Search as temáticas principais já lá estão.
As quadras são, para mim, o grande mistério pessoano. O que leva Pessoa, no fim de uma vida e de uma obra tão fabulosa e diversa, a escrever 400 quadras? E à maneira do povo. É realmente inacreditável
O núcleo está criado?
Sim, e mais tarde desdobra-se nos heterónimos, no Pessoa ele mesmo e na prosa poética do Bernardo Soares. É um desdobramento mas sobretudo uma maneira de escrever completamente diferente, numa outra língua e com outras vivências. O Pessoa escreveu em inglês até ao fim da vida, mas há muitas variações, sobretudo porque ele vai perdendo a faceta coloquial do inglês quando volta a Portugal e estuda a fundo a literatura portuguesa.
Também estudou as quadras pessoana, outra área pouco conhecida quando pegou nelas…
Sim, outra área mal amada no corpus pessoano. As quadras são, para mim, o grande mistério pessoano. O que leva Pessoa, no fim de uma vida e de uma obra tão fabulosa e diversa, a escrever 400 quadras? E à maneira do povo, com ele diz. É realmente inacreditável. Já tinha escrito algumas, certamente que estudou o cancioneiro, mas escrever tantas nos últimos anos de vida? É o grande mistério no enorme mistério que Pessoa é. Ainda hoje não sei explicar.
Os contributos pessoanos terão ofuscado a sua poesia?
Talvez. Fica-se sempre marcado por Pessoa. E ele foi, de facto, uma grande influência, sobretudo o Bernardo Soares e o Álvaro de Campos.
É aliás do Álvaro de Campos a epígrafe que abre Atravessar o Frio…
Não podia ser outra. Identifico-me muito com esse poema: “Depois de escrever, leio…/ Porque escrevi isto?/ Onde fui buscar isto? De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu…// Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta/ Com que alguém escrever a valer o que nós aqui traçamos?” Muitas vezes, quando abro livro antigos, leio-me como se estivesse a ler um autor desconhecido. Toda a escrita é um mistério.