Era uma vez um português de 2.ª
Nascido em Lourenço Marques, em 1936, fui por isso classificado como «português de 2.ª», nos termos do Acto Colonial de 1930, e só ganhei os meus galões de «provinciano ultramarino» quando, em 1951, Salazar aboliu as colónias. Andava eu então pelos meus 14/15 anos e vivia uma adolescência feliz, despreocupada e desportiva na cidade que conhecia a palmo e percorria de lés a lés, dando ao pedal na minha «burra» de duas rodas. Tinha algum jeito para jogos com bola, era mau em corridas e saltos, mas um barra em ping-pong.
Na minha infância fizera já pelo menos duas viagens à então chamada Metrópole, para «mudanças de ares», por conselho médico. Meu pai, em consequência da morte prematura do meu avô Otelo, tornara-se, findo o liceu, aos 17 anos, funcionário dos Correios de Moçambique e deslocava-se com frequência para chefiar estações no interior da colónia. Algumas das zonas aonde ia estavam infestadas de malária, e eu, que, a instâncias dele o acompanhava, fui vítima de várias crises de paludismo por, em vez de tomar o comprimido anti-palúdico, o meter na boca e… cuspir.
Com as vindas à Metrópole, aos seis anos estava em Lisboa, onde acabei por fazer a instrução primária, numa escola pública, sita na Av. do Visconde Valmor, perto do andar dos meus avós maternos, na Av. Elias Garcia. Na escola pontificava com rigor e saber o «sô» Lima, professor preto, natural de São Tomé, e ainda hoje faço de cabeça contas de adição, subtracção, multiplicação e divisão e sei a tabuada de cor.
Eu e meus avós atravessámos o período da II Guerra Mundial sem grandes carências Já na reserva do Exército Ultramarino com a patente de capitão, meu avô fora chamado a prestar serviço num posto de racionamento da R. da Beneficência e, assim, nunca nos faltou o pão em casa.
Aos 10 anos ingressei no Liceu Camões e ali fiz o 1.º ano [actual 5.º], logo revelando dificuldades na Matemática e ansiando pela saída de O Mosquito [semanário de BD, então muito popular]. Meus avós eram muito carinhosos e só me davam um ralhete quando eu aparecia em casa sem a camisola ou o boné que me tinham comprado e eu oferecera a qualquer cachopo com quem jogara às caricas e reconhecera ser mais necessitado do que eu.
Em 1947, regressei a Lourenço Marques, e no antigo Liceu 5 de Outubro (já rebaptizado de Salazar), completei o 6.º ano [actual 10.º], revelando clara vocação para Letras, dado reprovar sistematicamente a Matemática. A minha coroa de glória aconteceu na prova oral de Português, quando tive de ler o Auto da Alma, de Gil Vicente. Puxei da minha vertente teatral e «representei» a peça para deslumbre do professor («Ora até que enfim que aparece alguém que sabe ler e dizer» exclamou).
No 7.º ano [actual 11.º e então último ano do liceu], outra vez em Lisboa, outra vez no Camões, fui obrigado a escolher a alínea; escolhi a F, Ciências, à revelia da minha vocação. É que, gorada a hipótese de, findo o liceu, ir para o Actor’s Studio de Nova Iorque, restava-me a carreira militar. Nos exames, chumbei a Matemática, Físico-Químicas e Desenho, e dispensei da oral a Ciências Naturais, Organização Política e Administrativa da Nação e… Filosofia. Diga-se, porém, que os exames coincidiram com abertura da Feira Popular (onde é hoje a Gulbenkian), onde decorriam as primeiras experiências públicas de televisão. Para um cábula inveterado como eu, era uma tentação. Antes dos exames, fui encarregado de organizar a Festa de Finalistas. Convidei Couto Viana, Paulo Renato e Tomás Ribas para montarem peças no ginásio do liceu, e, como protagonista, actuei nas três.
E regressei de novo a Lourenço Marques para repetir as disciplinas chumbadas, que concluí com altas notas (16 a Matemática!!!). Antes, como era obrigatório para todos os jovens com 17 anos, ingressei na Milícia da Mocidade Portuguesa. O capitão encarregado das classificações, Nuno Viriato Tavares de Melo Egídio (general Chefe do Estado Maior das Forças Armadas após o 25 de Novembro de 1975…), no final escreveu sobre mim: «Não tem a mínima vocação para a carreira militar».
Para o que revelava vocação era para o teatro: ainda no âmbito das actividades extra-curriculares do liceu, eu e a Isabel Vilanova, aluna do Liceu Feminino, representámos Falar Verdade a Mentir, de Garrett, e foi um sucesso. E também organizei a Festa de Finalistas, cujo discurso final esteve a meu cargo, numa despedida apoteótica. Entretanto, acompanhado ao acordeão pelo Fernando Carvalho, venci num concurso promovido pelo Rádio Clube de Moçambique, cantando um sucesso do italiano Walter Chiari, o que nos valeu uma fotografia estampada no Notícias, de Lourenço Marques. E, após uma viagem de comboio a Joanesburgo, vim, de avião (36 horas, quatro escalas), até Lisboa, para, em Outubro de 1955, ingressar na então Escola do Exército, como cadete.
Passei a custo o 1.º ano, o que só consegui porque na oral de Matemáticas Gerais, o professor (major Alcide de Oliveira) me deu como alternativa chumbar ou… imitá-lo a ele, como sabia que eu costumava fazer. Lá tive que, ali mesmo, executar a perfomance, o que me valeu um 10 salvador. Na festa dos exercícios finais, subi, mais uma vez, ao palco para cantar e fazer uma imitações.
Um salto no tempo e eis-me a 31 de Janeiro de 1956, a iniciar o namoro com a Dina, com quem em Novembro de 1960 viria a casar, logo após ter sido publicada a lei que permitia o casamento de militares no posto de alferes, eliminando a obrigatoriedade de apresentação de prova de que a «conversada» não possuía dote. Vira a Dina pela primeira vez no liceu de Lourenço Marques, em 1952. Voltei a vê-la um dia na Praia da Polana. Depois, quando repeti o 7.º ano, ela (juntamente com o futuro pintor Ângelo de Sousa e o futuro ministro da Frelimo Jacinto Veloso) fora minha colega de turma. Em Setembro de 1956, já em Lisboa, fui esperar ao Cais de Alcântara os meus colegas de Moçambique que, como ela, vinham estudar para a Metrópole. E retomámos o contacto.
Em Novembro de 1960, quando casámos, estava-se exactamente a três meses do início da Guerra Colonial, que estalou em Angola a 4 de Fevereiro de 1961, com o ataque de militantes do MPLA a prisões de Luanda. Com o agravamento da situação, devido à onda de terror lançada pela UPA nas fazendas do Norte da Província e ao abortamento da «Abrilada» chefiada pelo ministro da Defesa, general Botelho Moniz, Salazar assume e pasta e lança a palavra de ordem «Para Angola, rapidamente e em força».
Parto a 3 de Junho de 1961 para cumprir a primeira de três comissões por imposição, como alferes, comandando um pelotão de uma Companhia de Artilharia independente, deixando a Dina grávida, com parto previsto para Agosto. E em Dezembro conheço finalmente a minha primogénita, quando vou a Luanda receber a minha mulher, para levar mãe e filha de quatro meses até ao interior profundo de Angola, um lugar com oito casas de alvenaria de comerciantes portugueses, posto administrativo difícil de encontrar no mapa, a mais de 100 quilómetros da sede de circunscrição, Duque de Bragança, no distrito de Malange. Separámo-nos em Dezembro de 62, quando a companhia recebeu ordem de transferência para S. Salvador do Congo e o chefe de posto fez o amável obséquio de me conseguir, na baixa de Luanda, um apartamento T zero para instalação da minha família.
Cumpridos 27 meses de comissão, com uma lista muito curta de mortos e feridos, apesar das emboscadas e minas anti-carro sofridas, a companhia regressou a Portugal sob meu comando, já tenente, para, em Agosto de 63, desfilar galhardamente e com a certeza da missão cumprida, pelas ruas de Queluz até ao quartel de origem, o Regimento de Artilharia Aérea Fixa ali situado.
A Dina vinha de novo grávida, e a nossa segunda filha nasceu em Dezembro de 63 e viria a falecer, em Agosto de 1971, com apenas sete anos de idade, vítima de um ataque fulminante de plasmodium falciparum, durante a minha terceira e última comissão na Guiné-Bissau.
Entretanto, já com três filhos, fizera uma segunda comissão em Angola, comandando, como capitão, uma companhia de Batalhão (!) de Artilharia, sem que tivessem surgido grandes problemas. Isto a despeito da intensa actividade operacional desenvolvida nas serras de Uíge e da Mucaba, localidade onde a minha Companhia de Artilharia 1409 sediou durante 27 meses.
Na terceira comissão não comandei qualquer sub-unidade, pois fui para a Guiné-Bissau em rendição individual, preenchendo a vaga aberta na Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica (REP-ACAP) do Quartel-General do comando-chefe pela morte de um capitão de Cavalaria, Carvalho de Andrade, resultante da queda do helicóptero que o transportava e a alguns deputados da Assembleia Nacional em visita à província.
Na REP.ACAP, chefiada pelo major Lemos Pires (que, após o 25 de Abril, eu indicaria a Costa Gomes como um possível bom governador para Timor-Leste), estava também colocado o capitão Ramalho Eanes. E nela foi meu subordinado um 1.º cabo com piada, chamado Camacho Costa, que me acompanhou numa tournée que promovi pela Guiné com militares-artistas ali em serviço, fazendo ele a apresentação e a locução dos espectáculos.
E para a repartição recrutei um outro 1.º cabo em serviço, como escriturário, no Batalhão de Engenharia de Bissalanca e que eu soube fazer locução de profissão na vida civil. Chamava-se João Paulo Dinis, e pouco tempo depois, seria por mim de novo recrutado para o desempenho de importante missão na noite de 24 de Abril de 74.
Não fora a morte chocante e inesperada da minha filha Cláudia e a minha terceira e última comissão teria sido quase feliz: encarregado e programar, instalar e acompanhar jornalistas nacionais e estrangeiros e outras entidades, superiormente autorizadas a visitar o território, tive a oportunidade de o conhecer em pelo menos três quartos da sua área, utilizando transportes militares (avião, navio, viatura todo o terreno) e, uma vez por outra, civis. Recordo, sobretudo, os acompanhamentos a jornalistas, como Maria Antónia Palla e o fotógrafo Eduardo Gageiro, e os enviados do Times, Washington Post e Stern.
Por Spínola, fui também nomeado director provincial do Turismo, cargo de que, passados dois meses, pedi a demissão, porque, por inerência, acumulava funções de censor dos filmes a exibir no Cinema UDIB da capital, o que não me agradava nada. Em Março de 1971, durante a Feira Industrial e Agropecuária de iniciativa da REP-ACAP, organizei, no Salão de Festas da Associação Industrial e Comercial da Guiné, destinado à burguesia local, grandes espectáculos de cantos e danças nativas com grupos representativos vindos dos vários «chãos» das diferentes etnias guineenses. E fui igualmente encarregado da organização de um grande espectáculo popular que até meteu a banda rock de Otto Schwarz, militante clandestino do PAIGC, que, após a independência, apareceria como quadro de grande importância do Ministério da Cultura. Fui ainda encarregado pelo novo chefe do REP-ACAP de organizar a cerimónia do 10 de Junho de 1973, na Praça do Império de Bissau, o que viria a ser motivo uma confrontação séria, sem consequências em termos de punição disciplinar, com o general [Spínola]. Fora mais um desaguisado entre o general governador e comandante-chefe e um capitão em serviço no seu quartel general um capitão que não só não era de Cavalaria, como, pior ainda, nem sequer frequentara o Colégio Militar. O que não impediu que, no fim da comissão do general, por ele próprio determinado perante o prenúncio de uma derrota militar que se sentia próxima, ele pespegasse no capitão um magnífico louvor.
Esta minha última comissão na Guerra Colonial fora iniciada em Setembro de 1970, após conclusão da época de exames na Escola Central de Sargentos, em Águeda, onde fui professor de Topografia e Transmissões desde 1967, a seguir ao regresso de Angola. Salazar finou-se em Julho de 70, mas, apesar da esperança marcelista anunciada dois anos antes, não se vislumbravam sinais de procura da tão ansiada solução política para a guerra com que o País se confrontava em três teatros de operações.
Em 1972, aproximando-se o fim da comissão na Guiné, e com a minha filha enterrada no cemitério da cidade, requeri o prolongamento da comissão por mais um ano. E em boa hora o fiz. Pois, apesar de 1973 ter sido um ano de graves acontecimentos (assassínio de Amílcar Cabral, início de utilização pelo PAIGC dos mísseis terra-ar soviéticos Strela, que entre Março e Abril derrubaram e liquidaram quase todos os pilotos de seis aviões da FAP [Força Aérea Portuguesa]), foi também um período de grande motivação para a profunda tomada de consciência dos oficiais do Quadro Permanente. Os quais a partir do anúncio da organização de um Congresso dos Combatentes do Ultramar, promovida por uma comissão nacional liderada por um general no activo e integrada por antigos oficiais milicianos, figuras conhecidas da jovem extrema-direita portuguesa reagem frontalmente, repudiando a sua concretização. E se manifestam em abaixo-assinados, subscritos por várias centenas de nomes, recolhidos em Portugal e no Ultramar. A esta posição vai somar-se, três meses depois, a reacção muito dura contra o ter dos decretos-lei, promulgados em Julho e Agosto, medida desesperada do governo marcelista para dar continuidade à Guerra Colonial. Reacção que vai dar origem ao contestatário, reivindicativo, indisciplinado, desorganizado, mas fortemente unitário Movimento dos Capitães do Exército.
Na adolescência, frequentando o liceu na minha cidade natal, eu convivera e confrangera-me com o racismo e a violência colonialistas que os meus olhos viam. Miúdo de 15 anos, aluno do 5.º ano [actual 9.º], dirigira-me à sede da Polícia «exigindo » autorização, obviamente negada, para visitar colegas finalistas, mais velhos, que eu conhecia mas com os quais nem me relacionava. Colegas que uma qualquer denúncia anónima segundo a qual eles se reuniam para ler e discutir O Capital, de Karl Marx, ou O Manifesto, de Engels fora motivo para a detenção pela Pide. A conjugação destes factores fizera nascer em mim a ambição de um dia poder participar, de qualquer forma, no derrube do regime imposto pelo velho das botas.
Agora em Bissau, no ano de 1973, finalmente vislumbrara a possibilidade de concretizar aquela ambição. Desde miúdo, apaixonado pelo teatro e pelo espectáculo, essa paixão motivara-me desde o liceu até à Academia Militar. Ali sempre me encarreguei de organizar as festas do fim do ano lectivo e de promover, com camaradas cadetes, a encenação de uma peça de António Manuel Couto Viana, O Acto e O Destino, por mim protagonizada e representada com grande sucesso no Tivoli, sendo logo depois requisitado ao comando da Academia Militar para protagonizá-la de no Teatro Nacional D. Maria II, integrando o elenco do Teatro da Mocidade Portuguesa. Sempre que a oportunidade surgiu, em todas as comissões que cumpri no Ultramar, pisei os palcos, não deixando nunca de ser considerado um excelente oficial pelos meus superiores, iguais e subordinados.
Gorado que tinha sido, em 1955, o meu desejo de realização vocacional de partir para Nova Iorque para cursar o Actor’s Studio e me realizar profissionalmente como (grande…) actor, resignara-me com alguma amargura, a seguir a carreira militar. Com o que dava enorme satisfação ao meu avô José e também a minha mãe, que ansiava ver-me um dia, com a farda de oficial, a governar um qualquer distrito de Moçambique. Mas naquele 2.º semestre de 1973, terminando a minha terceira comissão na Guerra Colonial, agradeci ao destino e aos deuses que o comandam a sua providência. Entrei no Movimento dos Capitães desde a primeira hora. E, após nove meses de riscos, de sacrifícios e de desânimos, mas também de entusiasmo e exaltação, as circunstâncias proporcionaram-me não só a minha participação no derrubar da Ditadura, mas, mais do que isso, ser o orgulhoso protagonista do mais notável acontecimento ocorrido no século XX em Portugal.