Um milagre tem sempre algo de excessivo, de aterrorizador. Algo que não se compreende e que nos ultrapassa. Uma pintura tem sempre algo de presente mesmo quando se foca no passado para falar de um milagre. E um milagre numa pintura nota-se nas cores, no vermelho real, no verde da coroa. No rigor dos detalhes da paisagem que não está ao centro, e que nos desvia o olhar para a Flandres quando na verdade estamos a observar um quadro pintado em Viseu, ou em Lisboa… ou no Brasil. Nota-se nos brocados que revelam que aquelas personagens são mais do que carpinteiros, são mais do que reis e sacerdotes, talvez sejam astrónomos ou astrólogos, caso contrário como saberiam guiar-se pela estrela? Compreenderiam o milagre? Pressentiam-no? Um milagre numa pintura pode estar no olhar das personagens. Mas não de todas. Só daquelas que se apercebem do momento que estão a viver. Como nesta pintura sobre a visita dos Reis Magos, que faz parte do Retábulo da Sé de Viseu. Pintado por Vasco Fernandes e Francisco Henriques entre 1501 e 1506, entre a chegada dos portugueses ao Brasil, a 6ª armada na Índia e o massacre de Lisboa onde morreram mais de 4000 judeus. Esta obra constituída por 18 pinturas que representam a vida e a paixão de Cristo, foi encomendada pelo Bispo D. Fernando de Miranda, falecido em 1505, um ano antes de Grão Vasco concluir o Retábulo. Nesta pintura todos os olhares se dirigem para lugares diferentes, nenhum se encontra. Nós olhamos para o quadro, e ninguém olha para nós, ninguém olha para ninguém. O que poderão estar a ver se não se veem uns aos outros? Continuamos a olhar para o quadro que não olha para nós e vemos: Três Reis Magos – Baltazar, Gaspar Belchior, acabadinhos de chegar, de presentes não mão para oferecer àquele que será o “Rei dos Judeus”, o Rei acima dos Reis. Mas se olhamos com mais atenção reparamos que há personagens a mais, e animais a menos. Não encontramos o camelo, por exemplo… Estará escondido no estábulo, atrás do burro e a vaca?
Percebemos ainda que estamos perante quatro reis e não três, ou então um deles poderá ser o pai de Jesus, o carpinteiro. Mas qual deles? O homem que está encostado ao estábulo poderia ser o José, mas encontra-se vestido de vestes vermelhas, a cor da realeza, e parece trazer uma oferenda para Maria, a mãe de Jesus. O rei que está a seu lado veste uma combinação de camisa e calções, vulgares trajes europeus, mas na mão traz uma lança e na cabeça um toucado de penas exatamente como o descrito na carta de Pero Vaz de Caminha sobre o vestuário da tribo indígena dos Tupinanbá. Uma carta escrita no mesmo ano em que Vasco Fernandes começa a pintar esta obra, o ano do primeiro encontro entre os portugueses que chegaram ao Brasil e esta tribo. Na mão esquerda do rei indígena, aquela que parece uma taça de nós de coco montada em prata. Ou será uma tigela de louça negra de Molelos? Aos pés do menino, um outro homem. A avaliar pela rica capa de arminho, comum entre bispos e clérigos, também não é rei, nem carpinteiro. Pode mesmo ser o novo bispo de Viseu, D. Diogo Ortis Vilhegas, astrónomo e conselheiro do Rei D. Manuel I, substituto de D. Fernando de Miranda. Teria Vasco tido tempo de o retratar nesta pintura, mesmo antes de a terminar?
Há quem diga que os magos não seriam reis, nem só 3, mas sacerdotes da religião zoroástrica, persas, sábios das constelações e bons conselheiros. Poderiam ser… bispos de Salamanca, índios Tupinanbá e… Quem será este quarto senhor à direita? Porque acena ele com um chapéu metade boina, metade coroa? Não serão estas as insígnias de um rei, o que traz preso na boina? E esta franja, em tudo igual à de D. Manuel I, 5º Duque de Viseu, 5º senhor da Covilhã, 4º Duque de Beja, 4º senhor de Moura, Rei de Portugal? E que presente terá ele trazido ao “Rei dos Judeus”? Que presente dará um Rei que acaba de encontrar um continente, a um outro rei que acaba de chegar ao mundo para o converter? Uma moeda de ouro? Aquela que o menino Jesus traz na sua mão? Ou será o incenso, presente que um sacerdote poderia dar a um outro sacerdote? Ou mirra? A oferenda para um profeta.
Imagino Vasco a retratar com todo o rigor os últimos pormenores do seu Rei. Imagino-o ainda a pintar pormenores a 19 de abril de 1506, num domingo à tarde, enquanto no convento de São Domingos, em Lisboa, um crente repara na cara iluminada de Cristo durante a missa e grita: milagre, milagre! Perante o alvoroço que se gera na sala, um cristão-novo tenta esclarecer os presentes dizendo que se trata apenas de um reflexo da luz. O cristão-novo é espancado até à morte por causa do seu comentário. O milagre por ser excessivo, provoca excessos, provoca terror. E assim se dá início ao massacre dos judeus que durou três dias. Quanto tempo terá demorado a notícia a chegar aos ouvidos de Grão Vasco? Que pormenor estaria a ultimar no seu retábulo?
D. Manuel I, que vivia em Abrantes para fugir à peste, e que se deslocava por essa altura a Beja para visitar sua mãe terá ouvido a notícia do massacre já em Avis. Frades dominicanos incitavam à violência em Lisboa, prometendo a absolvição de todos os pecados para quem pecasse contra aqueles responsáveis pela fome, pela seca e pela peste no país, lançando-os à fogueira, no Rossio.
O massacre dos judeus não vem nos livros de História, nem transparece na Adoração dos Reis Magos de Grão Vasco, mas foi descrito por Damião de Góis, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Garcia de Resende. Escritores excessivos, aterrados que nunca serviram de musas a outros pintores como a carta de Pero Vaz de Caminha a Vasco. Ou se calhar o massacre está lá, no quadro, mas apenas o burro seja único a olhar para ele, a olhar para o cometa, o único a ver o que não se vê neste quadro, o único a perceber que o que vem lá não são bons presságios, o único a denunciar o que Grão Vasco também conhece mas ainda não sabe como representar e por isso enclausura no olhar do burro. Talvez o milagre, que só o burro vê, só o tolo da corte vê, só o louco da aldeia, seja essa ideia de que a arte, mesmo quando segue todas as métricas e todas as geometrias de todas as escolas de pintura ou religião, conta sempre muitas histórias para além daquela que prometeu contar. J
Nota: crónica inspirada nas múltiplas visitas guiadas pela drª Odete Paiva aos tesouros nacionais guardados no Museu Nacional Grão Vasco, em Viseu.