A premiada série “Blacksad” dos espanhóis Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido, de que foi editado o quinto volume (“Amarillo”) é talvez a mais conhecida, embora esteja na fase de ser considerada “passé” em alguns círculos. A novidade de usar animais antropomorfizados (e as suas caraterísticas “naturais”) para criar personagens complexas num mundo que recria o policial negro americano dos anos 1950 talvez se tenha esgotado um pouco, e é certo que nem sempre se podem ter ideias fabulosas, como a de usar animais de pelo branco como protótipos de uma espécie de Ku Klux Klan ariano e racista (em “Artic Nation”). E, como noutros casos, as citações mais ou menos óbvias do argumento de Canales poderão ser consideradas inteligentes ou pedantes consoante o posicionar do leitor perante a obra. Por “Amarillo” passam interpretações não muito lisonjeiras dos escritores “Beat” (Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William S. Burroughs), de “Freaks” (e da tradição do circo/”carnival”), ou da mais “recente” Patty Hearst. Intui-se que o manuscrito de Chad/”Keraouc”, que tem um curioso papel secundário, será “On the Road”, dado o tema de viagem transmericana, patente também nas referências à mitologia da Route 66.
Não é mentira que haja exageros no argumento e “muletas” para resolver a narrativa nos limites de cada álbum, mas “Blacksad” não esquece a obrigação de construir personagens e histórias convincentes, e mantem uma qualidade que só pode ser recomendada. E que é potenciada pelo excelente e ainda surpreendente desenho de Juanjo Guarnido, sobretudo pelo modo como alguns elementos secundários são trabalhados. O papagaio tagarela e inconveniente, o koala preciso e calculista, o flamingo “Burroughs”, o bisonte “Ginsberg”, as “aparições” do Papaléguas e do Coiote, da revista “MAD”, ou até a capa amarela a citar o nome da cidade texana que dá nome ao álbum.
Curiosamente outra das apostas da Arcádia numa editora francófona menos divulgada (a Bamboo) tem o mesmo tópico da viagem transmericana. “O comboio dos órfãos” de Charlot e Fourquemin parte de factos reais, a distribuição de crianças abandonadas recolhidas por instituições de caridade nas metrópoles do Leste (sobretudo Nova Iorque) nos anos 1920, de modo a ajudar a povoar o Noroeste rural. Naturalmente que há equívocos e mistérios, revelados décadas mais tarde, à medida que as antigas crianças procuram conhecer (e ajustar contas com) as suas origens. Se a premissa é forte e intrigante, e a história se desenvolve com correção bem intencionada ajudada pela edição ser composta por dois volumes da série original, “O comboio dos órfãos” tem duas fragilidades importantes: um desenho demasiado infantil para a sua temática, e, sobretudo, um argumento para lá de previsível. Este seria o tipo de BD que almejaria em tempos ajudar leitores jovens a evoluir para histórias mais “sérias”. Mas é muito duvidoso que essa seja hoje uma estratégia válida, ou se não valerá mais a pena a esses mesmo leitores saltarem diretamente para “Blacksad”, cujas mensagens básicas de decência e generosidade “humanas” são independentes do descodificar das suas referências.
Blacksad 5: Amarillo. Argumento de Juan Díaz Canales, desenhos de Juanjo Guarnido. Arcádia. 60 pp., 15 Euros.
O comboio dos órfãos 1: Jim e Harvey. Argumento de Philippe Charlot, desenhos de Xavier Fourquemin. Arcádia. 96 pp., 20,80 Euros.