Relato com sabor a catarse que foca as vidas e amizades de diferentes personagens desde a infância nos anos 1970 aos nossos dias, inicia-se como um registo semiautobiográfico focando a evolução de indivíduos; marcada, para além de acontecimentos esperados (como o PREC, a queda do muro de Berlim, ou 11 de Setembro de 2001), por um misterioso momento traumático no Norte de África em 1980, com repercussões conspirativas em série que se estendem até ao presente. Sendo seguro que tocará mais de perto quem compartilhe referências com o autor, mesclam-se também elementos globais e filosóficos, por onde perpassam noções de memória, mito, identidade, grandeza, viagem, desilusão, vingança, desejo ou vestígio, corporizados em aparições fantasmagóricas de Bartolomeu de Gusmão, ou do sempiterno D. Sebastião.
Mais ilustração sequencial em forma de diário gráfico do que banda desenhada, o ambiente desolado e vazio com excelente uso de cor que marca os momentos que que é feito “Cidade suspensa” evoca Moebius, mas também o Moebius lido por autores subsequentes, como Loustal/Paringaux, Pierre Christin nas suas “Correspondances” com vários ilustradores (Bilal, Ferrandez, Denis, Cabanes, Mézières), ou, em Portugal, José Carlos Fernandes (em “Crossroads”) e um autor que merecia outra atenção, Pedro Morais. O estilo reforça o tom de mistério e perda/busca que servem como catalisadores da história, cuja abordagem não é de todo linear.
A questão principal em livros que se assumem à partida como memórias ficcionadas relaciona-se com o que escondem e presumem. Por um lado, há sempre um pudor natural em expor totalmente os eventos ou pessoas em causa, o que impede uma total interpretação de factos e motivações. Por outro, uma ferramenta narrativa (ab)usada é a auto referencialidade, no sentido em o autor omnisciente não se sente “obrigado” a grandes explicações de pormenor, sobre personagens secundárias, que surgem e se esfumam, ou no concluir de narrativas “secundárias”, por exemplo. Uma consequência adicional é que parece haver mensagens ocultas, com objetivo e destino bem definido, mas que escapam a um leitor casual, e só iniciados serão capazes de decifrar. Sejam estas características reais ou construídas, à generalidade dos leitores interessa que emirja um fio condutor, que o livro não se feche numa opacidade críptica. É uma fronteira difícil e oscilante que “Cidade suspensa” percorre, nem sempre com sucesso, mas sem medo. E o poder evocativo dos desenhos/narrações individuais ajuda a superar quaisquer fragilidades, bem como alguma grandiloquência na narrativa global. Sobretudo porque o trabalho (real) de Penim Loureiro em Arqueologia e reabilitação arquitectónica tem claros reflexos na grandiosidade das composições, da representação de paisagens à criação de ambientes simbólicos impossíveis, e à exaltação de ruínas, reais ou figuradas. Em última análise o enquadramento, personagens e mistérios esboçados aqui são partilháveis, e, precisamente porque não contam tudo, podem ser revistos, remontados, recontados.
O óbvio é desejar que, depois de um trabalho tão estimulante, o autor não espere outras três décadas para voltar à banda desenhada.
Cidade suspensa. Argumentos e desenhos de Penim Loureiro. Polvo, 70 pp., 11,90 Euros.