Nascida no concelho de Leiria, em 1979, Carla Pais gosta de regressar à sua aldeia e sentar-se de manhã na esplanada do café a ver se os comportamentos mudaram. Mas a passagem dos anos só lhe tem confirmado uma certa tendência para a imobilidade dos meios rurais. O homem, por norma, vai sempre à frente, a mulher é relegada para um papel secundário, e pais e filhos vivem muitas vezes em vidas paralelas. Desse material violento e visceral, duro e real, faz a matéria dos seus romances. Depois de Mea Culpa, lança agora Um Cão Deitado à Fossa, título que encontra no verso de Herberto Helder a melhor descrição do seu personagem principal, Urbano, homem desfeito por uma família desfeita que não evitará destruir a que ele próprio criou na idade adulta.
Jornal de Letras: Diz que Um Cão Deitado à Fossa é para quem gosta de romances com muitos invernos dentro. O que é um livro com invernos dentro?
Carla Pais: É um livro que de certa forma vai mexer com todos os sentimentos mais perigosos que temos dentro de nós, com tudo o que nos pode fazer mal, na medida em que nos obriga a pensar em coisas que vemos diariamente mas não queremos ver. O facto de as ler num romance pode quebrar essa vontade, muitas vezes inconsciente, de ignorar.
Este romance, como o anterior, Mea Culpa, não evita a dureza da vida, as suas feridas e violências…
Talvez seja intencional. Cresci numa aldeia, um espaço muito fechado que configura quase uma comunidade virada sobre si própria, moldada e agitada por todas as histórias que se passam dentro dela. E as vidas que aí se vivem são muito singulares. Atualmente, é espantoso verificar que essas aldeias continuam com os mesmos comportamentos que tinham há 20 ou 30 anos. Mesmo pessoas da minha geração, que até foram viver para cidades, mantêm os traços de uma educação machista, que vem do tempo da ditadura e da religião. Nessa perspetiva, o homem tem um papel de poder e a mulher de submissão.
A distância física desse universo em que cresceu — vive hoje em Paris — deu-lhe uma nova perspetiva?
Sim. Por estar fora há 10 anos, consigo ver com clareza e nitidez o que era impossível identificar quando vivia num desses meios rurais. Isto embora tenha casado nova e ter ido logo viver para uma cidade. Essa olhar também mudou em relação a episódios que se passaram na minha infância.
Dessa vivência devem sobrar muitas histórias. Como é que depois acabam num romance?
Numa aldeia há sempre personagens pilares, figuras que se destacam na comunidade. Mas não faltam personagens secundárias, com todas as suas histórias. Há muito por onde escolher. Este livro, no entanto, surgiu de uma forma muito particular. Fui ver um jogo de badminton do meu filho e de repente apareceu-me a imagem de um velho de barbas e mãos grossas deitado na cama. Pela janela entrava uma claridade que percebi ser fria, o que me levou para um inverno. Senti que estava qualquer coisa prestes a acontecer… E com isto tudo perdi o jogo do meu filho… Nessa altura, andava a ler um livro do Herberto Helder, A Morte sem Mestre, e ao deparar-me com os versos “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!” percebo imediatamente o destino desta personagem, do Urbano.
O que a interessou no tema do arrependimento tardio?
Urbano é um homem rejeitado ao longo de toda a vida em benefício do irmão que é deficiente, numa família completamente disfuncional nos afetos. Mas esse Urbano, que poderia ter aprendido alguma coisa com o seu sofrimento, acaba por cometer os mesmos erros com os seus filhos. Situações como esta acontecem muito nas aldeias, como se pais e filhos vivessem vidas paralelas. Apetece-me dizer: não façam o mesmo, cortem com o passado.