Quando esta entrevista foi feita a Francisca de Magalhães Barros, 35 anos, ativista pelos direitos das mulheres e das crianças, a Meta, de Mark Zuckerberg, tinha-lhe eliminado a conta no Instagram. Desde o ano passado, foi a terceira vez que aconteceu. É este o resultado de “queixas daqueles que combato”, diz na conversa que teve com a VISÃO e que a seguir se transcreve. “Mas não vejo isso acontecer a quem tem contas através das quais faz circular discursos de ódio misógino”, acusa.
Há dez anos, Francisca de Magalhães Barros nasceu para o ativismo após passar, ela própria, pelo trauma da violência doméstica. “Com essa experiência tão íntima, descobri o muito que era preciso fazer na defesa dos direitos das mulheres, que estavam, e continuam a estar, sob um forte e terrível ataque”, afirma. Para lá de ajudas concretas no terreno, o seu trabalho de ‘formiguinha’ tem-se sobretudo destacado pela recolha de muitos milhares de assinaturas para petições entregues no Parlamento, que já conduziram a alterações legislativas como a que determinou, em 2021, que as crianças que presenciam situações de violência doméstica sejam também consideradas vítimas, e a que, em 2022, alargou de seis meses para um ano o prazo de queixa por violação.
Agora tem em mãos uma petição com mais de 200 mil assinaturas, que ainda não foi entregue na Assembleia da República, mas que já levou, em julho último, pela dimensão que atingiu, a que o Parlamento aprovasse na generalidade três projetos-lei, do Bloco de Esquerda, do Livre e do PAN, que passam a violação de crime semipúblico (dependente de queixa da vítima) a crime público (é iniciado um processo, mesmo sem o consentimento da vítima). Aqueles três projetos-lei estão agora em discussão na especialidade, e as vozes críticas fazem-se ouvir, a começar pela possibilidade de a vítima, contra a sua vontade, ser forçada a passar por um processo judicial traumático, de revitimização, e para o qual pode não estar preparada. “Esse ‘discurso da revitimização’ foi o mesmo que se usou, há 25 anos, para que a violência doméstica não fosse um crime público”, responde Francisca de Magalhães Barros nesta entrevista. Mãe de uma rapariga de 12 anos, a ativista está de corpo inteiro na sua luta. Até no seu trabalho como pintora o tema da violência contra as mulheres predomina. “Para mim, não pode existir obra sem causa humana”, diz.
Assumiu publicamente que foi vítima de violência doméstica. Como diria que a Justiça atuou face ao seu drama pessoal?
Foi demasiado morosa – e nunca mais irei recuperar o tempo que demorou. Além de que afetou toda a minha família. Nem tenho como agradecer o apoio que os meus pais me deram. É realmente complicado.
Acabou por ser o seu caso pessoal a “empurrá-la” para o ativismo contra a violência doméstica e pelos direitos das mulheres?
Sim. Com essa experiência tão íntima, pela qual passei há dez anos, descobri o muito que era preciso fazer na defesa dos direitos das mulheres, que estavam, e continuam a estar, sob um forte e terrível ataque.
O assumir desse ativismo foi para si uma decisão difícil, pela implicação que tem de a obrigar a uma exposição pública que porventura não desejava?
Foi uma decisão necessária. Obrigatória. Hoje, não é sequer uma questão que se me coloque. É quem eu sou. A exposição pública faz parte disso.
Desencadeou uma petição “contra a violência sobre as mulheres”, que ainda não foi entregue na Assembleia da República, mas que reuniu mais de 200 mil assinaturas, e que já levou a que, em julho passado, o Parlamento aprovasse na generalidade a transformação da violação em crime público. O que significa que o Ministério Público, a partir da denúncia de um terceiro, pode abrir um inquérito-crime, mesmo sem o consentimento da vítima. Há quem defenda que essa mudança representa uma perda de direitos por parte da vítima, que, contra a sua eventual vontade, será forçada a passar por um processo judicial traumático, de revitimização, e para o qual pode não estar preparada. E, nos casos de menores, a questão em causa torna-se ainda mais problemática… Como vê estas advertências?
De acordo com os projetos-lei aprovados, nenhuma vítima é obrigada a participar numa investigação. É o que também acontece, por exemplo, nos casos de violência doméstica. E é preciso relembrar que Portugal, sendo um dos cerca de 40 países signatários da Convenção de Istambul, continuava a ter a violação como um crime semipúblico, incumprindo o documento que assinou, que aconselhava exatamente o contrário. Agora, a violação foi tornada crime público, mas com medidas que protegem sempre a vítima. Esse “discurso da revitimização” foi o mesmo que se usou, há 25 anos, para que a violência doméstica não fosse um crime público. Essas pessoas parecem não perceber que as vítimas de violência doméstica também são violadas nos próprios casamentos e relações. Foi o salto da violência doméstica para crime público que permitiu começar a fazer o caminho para o fim do silêncio e para o aumento das queixas.
Com a transformação da violação em crime público, pretende-se que o mesmo aconteça com as mulheres violadas, que não têm apoios, que têm a sua voz silenciada, e que sentem que são elas que têm de ter vergonha. Não pode ser, os agressores e violadores é que têm de ter vergonha e ser punidos. Para o crime de violação, não nos esqueçamos, existia um prazo de apenas seis meses para apresentar queixa, que conseguimos alargar para um ano, com uma petição de 2022. Esse prazo nem deveria existir, sequer. Era mais do que necessário dar este passo.
É urgente que a lei penal puna com mais severidade o crime de violência doméstica, para que seja menos frequente a suspensão da execução da pena, que muitas vezes expõe as vítimas à reincidência e mesmo ao assassínio. A violência doméstica tem um elevado grau de perigosidade
Os críticos da transformação da violação em crime público também argumentam que as vítimas que rejeitem a instauração de um processo-crime deixarão de procurar a ajuda de que precisam – psicológica, médica ou outra –, com receio de que o caso seja denunciado. Como comenta esta alegação?
Isso não vai acontecer. São numerosas as mulheres que me contam os seus próprios processos e desfechos em casos de violação. Temos de prender os violadores, é esse o denominador comum para prevenir futuras violações.
Conforme o que está elencado na referida petição que será entregue na Assembleia da República, o que falta ser discutido e votado no Parlamento?
O aumento das penas mínimas em casos de violência doméstica. É urgente que a lei penal puna com mais severidade este crime, para que seja menos frequente a suspensão da execução da pena, que muitas vezes expõe as vítimas à reincidência e mesmo ao assassínio. A violência doméstica tem um elevado grau de perigosidade. Depois há a autonomização do crime de feminicídio, expressamente aconselhada pela Convenção de Istambul, tendo em conta os seus contornos específicos, o contexto que favorece a sua prática, os múltiplos bens jurídicos e valores violados, além da própria vida, e as consequências brutais para os filhos, sobretudo se forem menores. Mas é preciso fazer mais. No que diz respeito ao crime de abuso sexual de menores, por exemplo, o prazo de caducidade do crime devia ser de, pelo menos, 50 anos. Muitas vítimas só conseguem falar passados bastantes anos, como se viu no caso dos abusos dentro da Igreja Católica portuguesa.
Como nasceu a mobilização para a petição que agora superou as 200 mil assinaturas?
Logo nos primeiros meses do corrente ano, fomos assolados por um autêntico pesadelo: só em janeiro, cinco mulheres foram mortas por homens, quatro em contexto de violência doméstica, e os casos de violações sucediam-se. Em grupo, decidimos pressionar para que fossem tomadas medidas. E a nossa petição chegou às 204 mil assinaturas, quando os nossos detratores apostavam que no máximo teria 700…
Neste momento em que falamos, tem a sua conta no Instagram desativada à sua revelia. Conta essa que lhe serve de plataforma de apoio a mulheres vítimas de crimes. É a primeira vez que essa desativação acontece?
Não. Desde o ano passado, já por três vezes me mandaram a conta abaixo.
Protesta junto da Meta sempre que a sua conta no Instagram é atirada abaixo?
Sim, claro.
O que lhes diz?
Dou-lhes conta do meu ativismo de cidadania, com artigos jornalísticos que o comprovam, com leis que foram mudadas, com petições, tanto em Portugal como na Europa, por cujas recolhas de assinaturas fui responsável.
E o que lhe respondem?
É difícil falar com a Meta. Tem um mecanismo único que não reconhece o que é realmente perigoso: os atentados contra os direitos das mulheres, crianças, idosos e demais pessoas necessitadas. Tenho tido de aguardar muito tempo até que a conta me seja devolvida, o que põe muitas vítimas, que procuram o meu apoio, em standby, quando não podem esperar.
Vê uma intenção maliciosa no que tem acontecido com a sua conta no Instagram?
Foram queixas daqueles que combato que levaram a Meta, uma vez mais, a eliminar a minha conta. Mas não vejo isso acontecer a quem tem contas através das quais faz circular discursos de ódio misógino. Há quem queira silenciar vozes como a minha. Comigo, tentam fazê-lo deitando a minha plataforma abaixo. Esquecem-se, porém, de que as nossas maiores vitórias têm sido a nível legislativo. E isso ninguém pode parar ou silenciar.
Que avaliação faz da atuação da Justiça face à violência sobre as mulheres?
Há progressos. Em 2021, através de uma petição, conseguimos que uma alteração legislativa fosse feita, para que as crianças que presenciam situações de violência doméstica sejam também consideradas vítimas. E para não estarem diante dos seus agressores, as vítimas podem fazer declarações para memória futura – o que no meu caso, há dez anos, nunca me foi proposto. Dou aqui, como exemplo, o caso de uma vítima de um crime horrendo, que foi queimada com ácido. Ajudei-a do início ao fim, e ela prestou depoimento para memória futura. Nunca mais terá de ver aquele indivíduo, o seu agressor.
E como está a proteção das vítimas?
Mal. Continuam as condenações de agressores a penas suspensas, os botões de pânico, a mesma ineficiência na proteção de vítimas que são ameaçadas de morte. Isto tem de acabar.
Como?
Têm de passar a ser regra as medidas judiciais de coação de pulseira eletrónica ou prisão preventiva para arguidos indiciados ou acusados de violência doméstica, e as condenações dos agressores a penas efetivas de prisão.
Foi o salto da violência doméstica para crime público que permitiu o fim do silêncio e o aumento das queixas. Com a violação como crime público, pretende-se que o mesmo aconteça
Mas há as casas de abrigo…
Embora nem sempre aconteça, as casas de abrigo são disponibilizadas como opção, logo na altura da queixa. Mas são, na verdade, uma “não opção”. Há mulheres que têm de levar crianças, mães e pais para dentro de outra “prisão”. Isto também tem de acabar. Nos casos de violência doméstica, em regra, tem de ser a vítima a sair de casa, a fugir, a esconder-se. Temos um sistema que foi feito e desenhado para homens; concebido para ser mais importante prender alguém que rouba numa loja do que o agressor que inferniza, espanca e viola a mulher ao longo de 30 anos. A casa de uma mulher e dos seus filhos é o seu porto de abrigo. Retirar isso é mais uma punição da vítima.
Porque é tão frequente as vítimas demorarem muito tempo a libertarem-se dos agressores, a queixarem-se às autoridades? Que mecanismo psicológico se passa aqui?
Há uma dependência de todos os tipos, da emocional à financeira.
E diria que a dependência de que fala é tal que, com frequência, não consegue convencê-las a apresentar queixa?
Felizmente, consigo. Existem vítimas com muita dependência emocional, a quem consigo arranjar ajuda psicológica, e outras a quem ajudo com advogados, em termos processuais. Depois existe tudo o resto, para recomeçar de novo. Nisso, claro, não consigo ajudar todas. Ainda assim, já ajudei a divulgar casos, para se conseguir casas, bens, alimentos. Ou só alguém com quem falar. Nos casos de violação, dou igual apoio e muita força às vítimas, sobretudo quando estão a meio de um processo judicial. Falo com elas. No abuso sexual de menores já é mais complicado, mas proporciono o mesmo tipo de ajudas, por exemplo, a pais destroçados, quando os abusadores beneficiam de penas suspensas.
Acha que, na maior parte dos casos, os filhos da violência doméstica têm o apoio psicológico e emocional de que precisam, para não serem, eles próprios, replicadores do ciclo disfuncional?
Não creio. Não creio mesmo que tenham. E é-lhes tão necessário esse apoio…
Que explicações consegue encontrar para o fenómeno do aumento da violência no namoro – física e psicológica?
Estamos a viver tempos estranhos, de um ódio gratuito e aberto em direção às mulheres, como forma de demonstração de poder e de satisfação. Temos na internet influencers a “ensinar” como se odeia uma mulher, em direto, para numerosos jovens e crianças que os veem. Tem de se combater e responsabilizar estes influencers, que na verdade são apenas uma data de jovens com a mente perigosamente enviesada. Temos também de os reeducar, porque, como se vê, está a ocorrer um retrocesso mental de jovens adultos no que diz respeito à sua perceção dos direitos das mulheres.
Notícias recentes dão conta de grupos de WhatsApp criados por homens que partilham com conhecidos e desconhecidos fotos em que as suas namoradas ou mulheres estão nuas. Supõe-se que já não se pode falar aqui em sentimento de posse. Do que se trata, então?
Não deixa de ser posse, partilhada com outros homens. Que também detêm a posse dos corpos que partilham. A única diferença, aqui, é a de que fica à vista a tremenda dimensão da degradação e da perversão que estes grupos mostram. E é preciso acrescentar os pedófilos: sabe-se que existem cerca de 500 mil diariamente ativos nas plataformas sociais. Contra tudo isto, a ação de quem nos representa e protege tem de ser imediata.
Diria que as redes sociais vieram mostrar uma realidade que estava dissimulada?
Sim. Estão a mostrar o que estava escondido.
Há a perceção de que, entre nós, as associações de defesa dos direitos das mulheres trabalham mais em comunicados para enviar às redações dos meios de comunicação social do que na organização e na promoção de manifestações de protesto na rua. Estes movimentos, em Portugal, estão a precisar de renovação, de rejuvenescimento?
O que sei é que não se consegue hoje fazer em Portugal uma manifestação em defesa dos direitos das mulheres e das crianças com 30 mil ou 40 mil pessoas na rua. Não basta falar, apoiar, tem de se estar lá em todos os momentos. As mulheres que se preocupam com o seu futuro têm de fazer notar a sua presença. É um dever de todos, homens incluídos.
No seu trabalho, como pintora, o tema da violência contra as mulheres também se tornou predominante?
Sim. Para mim, não pode existir obra sem causa humana.
