No dia 26 deste mês fará 80 anos. Está em paz com a sua consciência cívica e religiosa, mas sempre sobressaltado com as injustiças e os fariseus do regime. No último verão, Januário Torgal Ferreira regressou de vez a “casa”, ao Porto que o viu nascer, mas do qual nunca se afastou, até por razões familiares. De qualquer modo, pode agora contemplá-lo de novo, todos os dias, com o rio em fundo, da janela da sua humilde residência na Casa Diocesana do Seminário de Vilar, tão pasmado e deslumbrado como na juventude.
Na verdade, o antigo chefe de gabinete de António Ferreira Gomes, histórico bispo do Porto, combatente do salazarismo que Januário por várias vezes visitou no exílio, nunca cortou o cordão umbilical. Assume-se, inclusive, encantado com o cosmopolitismo da sua cidade e nem quer ouvir falar mal do turismo – “pobres de nós se não o tivéssemos”. Confia, até ver, na “inteligência do [presidente da Câmara] Rui Moreira” para gerir o sucesso e a identidade da urbe, mas adverte: “Só espero não ver pessoas humildes a serem despejadas de suas casas e certas zonas a serem ocupadas por aqueles que escorraçam a pobreza e a modéstia para instalar novo-riquismos.”
Durante 24 anos – a que juntou mais quatro de prolongadas e de já mais descontraídas reuniões, contactos e encontros –, foi bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança. “Guardo impressões magnificas de camaradagem, amizade, diálogo e espírito de entrega. Continuo a acreditar que os militares são, antes de tudo, promotores da paz, da diplomacia e da capacidade de diálogo.” Em livro recente – O Concreto da Paz só com Justiça (Caminho) –, reuniu reflexões sobre o País, o mundo e alguns protagonistas desde o início do século, desde os grandes conflitos internacionais ao comércio de armas, passando por causas mais caseiras. Nesta entrevista, mais do que revisitar os escritos, atualizamo-los.
Vêm à tona palavras atentas, comprometidas, por vezes mordazes e irónicas. No fundo, frases de um desassombrado homem da Igreja, pouco dado à ideologia do silêncio, às cumplicidades de sacristia e às tendências tradicionalistas de certos setores religiosos.
Esteve quase um quarto de século ao serviço das Forças Armadas e de Segurança. Quem foi o melhor ministro da Defesa?
O melhor não consigo dizer, até porque o cargo é relativamente transitório. Do ponto de vista intelectual e de abertura, Augusto Santos Silva foi uma grande personalidade. Culturalmente, apreciei trabalhar com Nuno Severiano Teixeira, António Vitorino, Veiga Simão e Rui Pena. Outros não me tocaram tanto, e eles dirão o mesmo de mim. É justo. Sobre Paulo Portas, por exemplo, não tenho nada a dizer.
No seu livro, faz um diagnóstico do estado do mundo, desde o início do século, sem deixar de fora guerras, conflitos, o comércio de armas, etc. Olhando para o fenómeno Trump nos EUA, para os tiques totalitários a Leste, para a crise dos refugiados e o terrorismo, o planeta está pior?
Em alguns aspetos, de facto, não melhorou desde a guerra do Iraque. E o que mais temo é a ausência de convicções. Foi isso que nos levou para essa guerra e, ainda hoje, os chefes de Estado envolvidos não tiveram a humildade intelectual de reconhecer que erraram ou que apostaram no cavalo errado. Durão Barroso não o fez. Hoje assistimos ao dilatar do fanatismo religioso e a uma guerra fratricida entre gente que supostamente acredita em Deus. Quase diria que é uma boa ocasião para um tipo defender o ateísmo…
O que espera de António Guterres enquanto secretário-geral na ONU, ainda que o poder dele seja limitado?
Identifiquei-me sempre com o espírito humanista e corajoso de António Guterres, embora estivesse em discordância com algumas coisas da sua prática governativa. Ele, num diálogo escrito, chegou mesmo a puxar-me as orelhas. E muito bem! Aceitei esse puxão de orelhas como outros que tenho recebido, mas mantive as minhas posições. Nunca esteve em causa o seu humanismo, a sua ética, a sua defesa do mundo mais pobre, miserável e postergado. Isto é a imagem de Guterres. A ONU precisa de se modernizar, tem ainda o esplendor dos reposteiros de outra época. Enquanto secretário-geral da ONU, a sua capacidade de diálogo pode levar o papel das Nações Unidas mais além…
O que Donald Trump acrescenta a este clima de tensão mundial?
Acrescenta desordem, fragilidade e inconsistência, mas o pânico é não saber o que esperar dele. Apesar de estar rodeado de fanáticos, tenho esperança de que, no seio do Partido Republicano, ainda haja quem possa travá-lo e dizer-lhe “não”. Quanto à Europa e ao ressurgir da extrema-direita, o problema é a democracia não responder a problemas reais.
E em Portugal, responde?
Este Governo recebeu um País desventrado, aniquilado. Provou-se que havia alternativa e saiu tudo ao contrário das profecias. Se não fossem António Costa e Mário Centeno, Portugal estava destruído. Chamem-me ignorante, clubista, populista, o que quiserem, mas acreditei e acredito na chamada “geringonça”. E não me venham dizer que o êxito foi de todos. Vão aos jornais da época e leiam as previsões dos “Velhos do Restelo” sobre o que ia acontecer a esta solução governativa e parlamentar. Eu sei bem os nomes que chamaram ao ministro Mário Centeno.
Foi uma solução pedagógica, até para os eleitores?
Sim, e eu creio que vai ter influência nas próximas eleições legislativas. As pessoas já perceberam que o xadrez pode ser outro. A esquerda nunca foi respeitada, para alguns foi sempre o “Diabo”. O mérito desta estrutura parlamentar foi promover o diálogo, o Estado Social, o aumento do salário mínimo e das pensões, dando às pessoas o que lhes foi retirado na altura da troika. Deu-se esperança. Esta solução à esquerda serve também para os portugueses refletirem sobre as suas opções políticas e governativas. Ao contrário do que se pensava, o clima de tensão e o diálogo entre forças diferentes têm sido produtivos e pedagógicos. Só tenho pena que, ao contrário da esquerda, a direita não tenha aprendido nada. A direita devia regressar à escola para aprender e estudar estes fenómenos políticos, ao invés de embarcar em pânicos, receios ou ilusões.
A nova liderança do PSD vem acrescentar alguma coisa?
No que diz respeito ao diálogo e ao confronto com a atual governação, considero positivo o desfecho da votação a favor de Rui Rio. No tocante ao interior do partido, vai ser mais um teste ao espírito de tolerância e de “adultez”!
A “geringonça” pode dormir descansada?
Sim, não tenho qualquer dúvida disso. O PCP e o Bloco de Esquerda também são forças patrióticas e, apesar das diferenças entre eles, têm-no provado. O poder é um serviço, e o patriotismo não é monopólio exclusivo do CDS e do PSD. O patriotismo é justiça e solidariedade, não é egoísmo. Posso dizer, por exemplo, que o partido mais devotado às Forças Armadas foi sempre o PCP. Já não estamos na fase das sublevações, de golpes e contragolpes, de pós-revolução. O que está a ser feito é ver se a justiça estica, se chega a todos, com propostas humanistas, exigentes e rigorosas.
Identifica-se com esta “magistratura de afetos” do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa?
Identifico-me com a proximidade, a urbanidade e a voz corajosa dele em determinadas circunstâncias, algumas bem trágicas, como aconteceu com os incêndios, mas não gosto de vê-lo cair na tentação de substituir o Governo, e isso, por vezes, tem acontecido.
O professor e filósofo José Gil escreveu, no Público, sobre a necessidade de trazer espiritualidade para a política. Falta um desígnio para o País?
Concordo com o professor José Gil. Aliás, o antigo Presidente checo, Vaclav Havel, já tinha falado da necessidade de espiritualidade à escala europeia, e ele não se referia a isso num sentido religioso. Mas quer maior desígnio do que tratar o povo com humanidade e dar-lhe dignidade? Não me venham cá com a beleza das “Descobertas”, das circum-navegações e os patriotismos de Aljubarrota. Não recuso isso, nem o discurso do empreendedorismo tão na moda. Mas querem melhor empreendedorismo do que salvar pessoas que nunca tiveram o estatuto de pessoas? O que eu desejo é que, à luz de um Estado de Direito, gente que nunca teve nada, tenha! Até porque, como dizia a Sophia de Mello Breyner, os pobres têm sempre alguma coisa que ainda lhes pode ser roubada. O antigo bispo brasileiro Dom Hélder da Câmara dizia algo como isto: “Se eu defender um bocadinho de solidariedade para com os pobres sou um santo. Se pedir justiça para os pobres sou comunista.” Ora, eu quero um País que partilhe os bens, que proteja os mais fracos, que evite monopólios. Investir nas pessoas, na cultura, na educação, numa escola mais aberta e fomentadora de valores, não é um desígnio? O dinheiro, os lucros, a pornografia bancária e deletéria é que não servem o País.
O dinheiro é sempre o “Diabo”…
Falar em questões de dinheiro divide. Um padre, um bispo ou um Papa que defendam dimensões éticas na gestão do dinheiro ou dos bens temporais é visto logo como sendo do reviralho. Provoca receio. Cristo teve razão quando disse: “Entre mim e o dinheiro tereis de escolher.”
Falou de solidariedade. Pergunto: os casos da Raríssimas e da Fundação “O Século” são a árvore ou a floresta nesse setor?
Com boa vontade, digo que são a árvore, mas o Estado, que gere o dinheiro de todos nós, deveria ser mais exigente na fiscalização das instituições. O Estado não pode ter medo, nem deve permitir que o escrutínio deste setor seja uma “mancha”. Conheço bem as fraquezas da humanidade: sempre que cheira a dinheiro, as pessoas penduram-se no Estado. O Estado é o regente de uma orquestra e não pode haver desafinações. A música devia ser a mesma para todos, mas há sempre quem queira tocar isolado, de acordo com o seu próprio gosto e proveito.
E como analisa a entrada da Misericórdia de Lisboa no Montepio?
Surpreende-me. Aconselharia a que esse dinheiro, que deve ter fins sociais, fosse carreado para outras veredas, até para evitar tentações.
Pelos vistos, as suas declarações à TSF sobre o salário mínimo foram mal interpretadas. Afinal, o que queria mesmo dizer?
Em fevereiro do ano passado, defendi o aumento do salário mínimo para 600 euros. Pelos vistos, fui ingénuo, mas é o próprio dono do Pingo Doce que diz que, em Portugal, ele não trabalharia com um salário de 500 euros! É preciso dar justiça às pessoas, motivá-las. E 600 euros seria o mínimo, nesta altura, para depois continuar a subir. Ora, o que disse à TSF é que, a par disso, não devemos esquecer as pessoas que nem sequer recebem o salário mínimo. Há gente de idade avançada, já reformada, que recebe pouco mais de 200 euros. Como é possível?! Não me importa que haja gente rica, desde que a riqueza seja distribuída, mas não vejo essa distribuição. O crescimento económico deve significar investimento em desenvolvimento integral, reformas de Estado, cultura, meios para o ensino, combate à pobreza, etc. É preciso promover a classe trabalhadora, motivar quem trabalha. As pessoas nunca tiveram direito a uma pequena ascensão económica. Vivem de favores e de ganchos.
Li que manteve durante algum tempo uns almoços mensais a convite de Mário Soares, em casa dele, na companhia dos padres Feytor Pinto e de Vítor Melícias. Que recordação guarda desses momentos?
Já admirava Mário Soares, mas nunca tínhamos privado. Juntou-se o Vítor Melícias e, mais tarde, o Feytor Pinto, de quem sou amigo, por sugestão da Maria Barroso. No fundo, Mário Soares queria conversar, trocar impressões sobre o País, a política, o mundo, as correntes artísticas, os livros. Foi numa altura em que ele também estava muito preocupado com a podridão do Estado Social. Ouvia falar de gente escorraçada, chegavam-lhe pedidos de ajuda, e ele queria saber a fundo o porquê de estarem a acontecer essas injustiças. De resto, ele era um bom anfitrião, recebeu-nos sempre com simplicidade e uma espécie de modéstia honrada, que eu gostaria que os portugueses tivessem conhecido de perto. E nunca me pediu favores, coisa rara quando nos convidam para uma mesa, no âmbito privado. Foram momentos de enorme riqueza, apreciei imenso a sua intuição e o facto de nunca ter tentado instrumentalizar-me. A santidade, por vezes, tem má fama, sabe? Mas santos são aqueles que têm o coração aberto para todos, não fazem discriminação. Quem promove um povo está a fazer uma obra de santidade. A santidade é natural, não é caricata, beata, exibicionista ou piegas. Esses é que são os santos entre nós. Soares não era crente, mas eu sei que, um dia, a gente se há de encontrar.
Sente que é olhado como uma espécie de “ovelha negra” da Igreja?
Quem me vir como tal é que fica mal na fotografia. O que nunca fiz foi ficar calado em momentos em que é preciso falar, isso não. Reconheço que, em muitas coisas, não estou em consonância com o tom musical. Desafino. Posso dizer que, mesmo no período da troika, em que fiz críticas, a maioria das pessoas sempre me tratou com grande civilidade, algumas foram mesmo calorosas. Mas também aconteceu que figuras da Igreja, ditas progressistas, vieram dizer-me que estava a sair dos trilhos…
Na última VISÃO, fizemos o retrato dos movimentos utraconservadores na Igreja Católica portuguesa que desafiam o estilo do Papa Francisco e que recuperam, entre outras coisas, as missas em latim. Que comentários lhe merecem estes rituais e a postura contrária à atual doutrina papal?
O que é mais de considerar são as tendências tradicionalistas, no que têm de mais medíocre: vestimentas, modas da estação, com o contraste de haver preferência por celebrações em latim, quando os executantes pouco latim sabem e poucas provas têm dado de gosto pela leitura, estudo e investigação de tal língua. Ficam-se pelas modas. Efémeras que são, passarão como o verniz que estala. Já há muito que eu pressentia esses hábitos de adolescentes. Quanto a desafiar o Papa Francisco, não posso reconhecer-lhes a natural capacidade de uma atitude critica fundamentada, porque essa exigiria seriedade, esforço e conceito. Cristo aconselha-nos que convidemos para a nossa mesa gente que não possa retribuir-nos, daí a fraternidade com os pobres e os abandonados. Quem prefere irmanar-se com modas de salão já sabe que há sempre uma fatura a pagar, no caso a receber.
No final do seu livro, escreve que Portugal estará perdido se for infiel ao 25 de Abril. Explique.
Se for infiel à necessidade de uma democracia exigente, rigorosa e qualificada, se for incapaz de responder às urgências sociais e a quem, de outras geografias, como os refugiados, nos procura, o País estará perdido. Não me interessa uma democracia farisaica, nem o discurso daqueles que não querem que a democracia rompa com os vestígios autoritários que ainda restam.