Menos 69 mil postos de trabalho ocupados por licenciados ou mais 46 mil? São duas realidades muito diferentes sobre como se tem comportado o mercado de trabalho português, mas foi entre esses dois números que balançámos nos últimos meses. Os dados originalmente divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) revelavam uma diminuição da população empregada com ensino superior, mas uma revisão publicada recentemente mostrou que essa quebra não era verdadeira. O problema estava na mudança no método de recolha dos dados devido à pandemia.
“Focando na população dos 16 aos 89 anos com ensino superior, com a revisão, não há variações homólogas negativas desde 2021, seja na população total ou na população empregada deste grupo populacional, em consonância com o que era observado no período pré-pandemia”, pode ler-se numa nota publicada pelo INE a 8 de novembro.
Esta conclusão contrasta com as várias notícias que, baseadas nos dados do instituto, iam dando conta de uma quebra do número de portugueses empregados com qualificação superior. Olhando para a série anterior, eles colapsavam no segundo trimestre deste ano, com uma quebra de 128 mil pessoas face ao mesmo período de 2022. No terceiro trimestre, continuavam a recuar (-69 mil). A própria estimativa de população residente com escolaridade mais elevada parecia estar a cair, o que sugeria que poderia estar a ser perdida para a emigração. Uma linha de argumentação popular durante algumas semanas era que Portugal estava a sangrar mão-de-obra qualificada, recebendo no país trabalhares imigrantes com baixos níveis de formação.
Com a série atualizada do INE, verificamos que esse grupo de trabalhadores licenciados tem, pelo contrário, aumentado em número. Eram mais 53 mil no segundo trimestre deste ano e eram mais 46 mil no terceiro, numa comparação homóloga (a população residente total com ensino superior também não estava a cair, como sugeriam inicialmente os dados).
A diferença entre ambas as séries fica perceptível neste gráfico do INE. A população empregada licenciada afinal não cresceu tanto como se estimava entre 2020 e 2022, o que significa que agora não existe um recuo face a esses valores (que não eram reais). Há sim um crescimento contínuo.
Em setembro, numa publicação de teor inédito no Banco de Portugal, Mário Centeno já tinha adiantado que a queda do número de licenciados era “um desvio estatístico, sem sustentação socio-económica”. Segundo o governador, o emprego mais qualificado não poderia ter crescido a este ritmo. “Na ausência de fluxos migratórios massivos de entrada de licenciados em plena pandemia, esta evolução não é credível”, escreveu.
Como se explica então um desvio tão grande? De forma curta: pela mudança no método de recolha de dados durante a pandemia. Questionado pela EXAME sobre se isso significa que sobreestimámos a resistência do mercado de trabalho durante o período de confinamento, o INE dá uma resposta mais longa e completa:
“Não sobrestimámos “a resistência do mercado de trabalho”. Sobrestimámos a composição da população total (e ativa e empregada) em favor dos mais escolarizados. Esta sobrestimação resultou da necessidade de adotar o modo de recolha exclusivamente telefónico durante o período da pandemia COVID-19. Esta intervenção, conjugada com uma redução na taxa de resposta, conduziu a alguma seletividade no perfil dos respondentes do Inquérito ao Emprego, no sentido de terem sido captadas mais respostas da população mais escolarizada.”
O INE considera que esta mudança foi, de facto, relevante entre os licenciados, mas não mudou radicalmente a imagem total que temos do comportamento do mercado de trabalho nesse período. Continua a responder o INE:
“No caso da população desempregada total e da taxa de desemprego, as revisões foram pouco expressivas (a revisão máxima da taxa de desemprego foi +0,2 pontos percentuais num único trimestre: no 2.º trimestre de 2021). Por esta razão, consideramos que o retrato traçado da evolução dos principais indicadores do mercado de trabalho do 2.º trimestre de 2020 ao 2.º trimestre de 2023 se mantém válido, com exceção, como referido, da composição, em termos de nível de escolaridade completo, da população total, inativa, ativa e empregada.”
A robustez do mercado de trabalho nacional tem sido um dos desenvolvimentos mais positivos dos últimos anos, com a população empregada próxima dos cinco milhões, níveis historicamente elevados e mais 900 mil do que há dez anos. Caso isso estivesse a ser conseguido através da criação de emprego pouco qualificado e destruição do mais qualificado, seria obviamente preocupante.
Concentarmo-nos apenas num grupo pode parecer um detalhe técnico, mas uma fatia do debate público suportou-se nestes dados. Se eles se revelaram errados, que mérito teve essa discussão? A EXAME perguntou ao INE o que garante que não possa haver erros semelhantes no futuro, ao que o instituto respondeu com o regresso ao método de recolha misto “presencial e telefónico” e a recuperação das taxas de resposta para o nível pré-pandemia.
“Mais recursos poderiam ter feito a diferença”
A revisão de séries de dados é algo comum nos institutos de estatística, mas em Portugal não estamos habituados a lidar com discrepâncias tão grandes em grupos específicos como aconteceu agora com os licenciados. O INE defende que “esta tipologia de prática de revisões encontra-se prevista na política de revisões do INE, prática essa pautada igualmente pelo Código de Conduta para as Estatísticas Europeias” e descreve o episódio como normal. “O INE identificou o problema, sinalizou-o ao público logo que coligidos os elementos necessários e concluída a análise dos resultados e diligenciou no sentido de o resolver com a rapidez possível.”
Recorde-se que esta revisão foi anunciada numa altura em que surgiram notícias sobre dificuldades de meios do INE. A publicação dos dados de remunerações médias em Portugal foi adiada de 9 para 20 de novembro, devido à “escassez de recursos humanos”.
Questionado pela EXAME sobre se mais meios poderiam ter contribuído para evitar revisões muito significativas como esta, o INE diz que facilitaria o processo. “Mais recursos poderiam ter feito a diferença, concretamente nas equipas das áreas sectoriais que tiveram de lidar com este tema, áreas que esperamos poder vir a reforçar muito em breve, com o recrutamento externo à Administração Pública”, respondeu fonte oficial por email. “O que normalmente acontece nestas situações, com equipas muito exíguas, é o impacto que pode ter no calendário de divulgação de resultados de outras estatísticas para dar prioridade aos exercícios necessários para o tipo de revisão efetuada.”
A Comissão de Trabalhadores do INE tem alertado que o instituto enfrenta graves dificuldades de atração e retenção de trabalhadores, concorrendo com outros organismos, como o Banco de Portugal – e grande parte do setor privado -, que conseguem oferecer condições melhores. Os salários não são apenas baixos, como o INE tem cada vez mais responsabilidades, com novas publicações ou aprofundamento das que já existem.
Já há publicações a serem adiadas. A Comissão de Trabalhadores avisava que, continuando esta trajetória, a função do INE, de publicação e divulgação de estatísticas oficiais, pode ficar comprometida. E a sua fragilização significará o empobrecimento do nosso debate económico e social.