Há espaço para considerações morais no mundo do financiamento dos Estados? Ou é um mundo de alinhamento de interesses e contratos invioláveis? No pós-2014, Rússia e Ucrânia entraram num diferendo em tribunal devido à recusa de Kyiv em pagar um empréstimo de três mil milhões de dólares contraído pelo anterior regime. Esse caso – e os cenários financeiros para o pós-guerra – podem servir de ponto de partida para discutir a legitimidade das dívidas e as linhas ténues (e por vezes arbitrárias) que guiam estes debates.
Essa dívida ucraniana remonta ao final de 2013, quando Kyiv emitiu três mil milhões em obrigações que tiveram um único comprador: Moscovo. O objetivo era contribuir para um pacote financeiro que ajudaria o então presidente Viktor Yanukovych, próximo do Kremlin, a travar uma aproximação à União Europeia. Yanukovych foi deposto, a Ucrânia entrou em crise e renegociou a sua dívida com os credores. A Rússia recusou e processou Kyiv. Agora que um dos países está a invadir o outro pode ser ainda mais complicado de explicar que essa dívida não foi assumida de forma coerciva.
Em tribunal, a Ucrânia não defendeu que se tratava de uma dívida odiosa, mas utilizou argumentos semelhantes e muitos académicos atentos ao tema seguem com interesse o processo, que está a contribuir para ressuscitar o conceito e talvez servir de referência para outros países no futuro.
Ele serve para definir um endividamento feito por um regime não democrático ou ilegítimo e que, por isso, que não deve onerar o regime que o substitui. “O problema é que é muito difícil de interpretar e aplicar. Por isso é que o debate neste espaço é tão frustrantemente infinito”, dizia Anna Gelpern, professora de Direito de Georgetown, à NPR.
A grande dificuldade é saber onde desenhar a linha. Ok, Saddam Hussein era um ditador. Essa é fácil. Mas e um caso como a Rússia, em que há eleições, mas com enormes dúvidas sobre a legitimidade do processo? Se Putin cair, quem o substituir deve colocar os russos a pagar esta dívida? E, se o critério for dívida que não beneficie o povo, qual é o limite dessa lógica? Oprimir o próprio povo é óbvio, mas e se for uma série de mega-projetos para desviar dinheiro?
É fácil perceber como isto se pode complicar rapidamente, aplicando-se a muito mais situações. Basta lembrar que, durante a crise da dívida da zona euro, houve vários movimentos – alguns com alguma força – defendendo a recusa em pagar a dívida (lembra-se do “as pernas dos banqueiros alemães até tremem”?). Ou, noutro âmbito, a campanha Jubileu 2000, pelo perdão de dívida aos países mais pobres do mundo. No entanto, estes casos parecem acabar sempre da mesma forma: não existindo um reconhecimento internacional do conceito, “odious debt” pode servir para estruturar o argumento, mas conseguir reestruturações de dívida depende sempre da relação de forças entre os intervenientes. O Iraque pós-2004 beneficiou da pressão dos Estados Unidos na negociação com os credores, a África do Sul pós-1994 já não teve o apoio da União Soviética.
O conceito de dívida odiosa e os limites da sua aplicação foram algumas das coisas acerca das quais a EXAME conversou com Mitu Gulati, professor de Direito na Universidade de Virginia. Mais do que dar respostas definitivas, é um debate útil para refletir sobre a natureza do endividamento.
“Quando conquista outro país, fica com as dívidas dele. Mas o que acontece quando se toma 20% do país?”
O que significa o conceito de “odious debt” (dívida odiosa)? E como pode ser aplicado?
É um conceito que surgiu originalmente no final do século XIX, início do século XX. Os Estados Unidos invocaram-no quando ocuparam Cuba, na guerra hispano-americana. Espanha tinha usado Cuba como colateral para pedir emprestado a credores europeus. Quando se conquista um país, fica-se obrigado a pagar as suas dívidas, mas os EUA disseram “não vamos pagar a dívida que incorreram para nos combater, estávamos a tentar dar a independência aos cubanos”. Portanto, essas dívidas são odiosas. Não usaram essa expressão, mas um académico russo que vivia em França usou-a duas décadas mais tarde. Esse académico estava a escrever sobre as dívidas do czar russo que os bolcheviques se recusavam a pagar, dizendo que eram odiosas. A ideia básica do conceito é que, se tem um mau líder, que pede emprestado e usa o dinheiro para propósitos que prejudicam o seu povo – e os credores sabem disso – quando esse líder for substituído, a população não tem de pagar as dívidas incorridas para disparar sobre ele. Durante 100 anos quase ninguém lhe prestou atenção. Estava em velhos livros de direito internacional da década de 1900 e 1920. Quando muitas colónias se tornaram independentes nos anos 60, questionou-se se as dívidas incorridas sobre os colonialistas deviam ser pagas pelos novos países independentes, mas isso acabou por ser colocado de lado e resolvido pela via diplomática. O tema volta a ser relevante quando os EUA ocuparam o Iraque, em 2003/2004. Saddam Hussein tinha cerca de 100 mil milhões em dívida e os EUA não a queriam pagar. Então, ecoando Cuba, disseram “não vamos pagar estas dívidas de um ditador malvado, nós somos os libertadores”. George W. Bush estava apaixonado por esta ideia de dívida odiosa e queria que o governo norte-americano puxasse por ela. Michael Kramer escreveu sobre isso, Joseph Stiglitz também [prémios Nobel da Economia].
Defendiam a ideia?
Sim. Os economistas argumentavam que era um bom conceito, porque queremos impedir que pessoas más estejam no governo. Se essas dívidas não forem pagas, haverá menos incentivos para que eles se comportem dessa forma. Portanto, o conceito ressuscita em 2003/2004, mas depois foram os próprios EUA que o mataram.

Que outros exemplos existem?
A China, em 1949. O governo comunista recusou pagar as dívidas anteriores. Há mais alguns exemplos que não se enquadram de forma perfeita. Nos EUA, depois da Guerra Civil, o Norte recusou pagar as dívidas do Sul. E, depois, o conceito aparece novamente no contexto da Rússia e da Ucrânia, em 2014. A Rússia emprestou dinheiro a Viktor Yanukovych, o líder-fantoche ucraniano. Esse empréstimo foi feito para garantir que a Ucrânia não se deslocava para o lado europeu. A Ucrânia avança na mesma e a Rússia exige que esse dinheiro lhe seja pago. A Ucrânia tem de pagar? Esse caso ainda está a ser litigado em Londres, nos tribunais ingleses, porque estava sob a lei britânica. As dívidas odiosas são um conceito geral, que estabelece que elas não devem ser pagas em primeiro lugar, mas sim em último ou nem sequer serem pagas. Se emprestou a um mau governo deve ser penalizado face a quem emprestou a um bom governo.
É difícil desenhar a linha entre um governo legítimo ou ilegítimo. Vladimir Putin é eleito na Rússia, e é diferente, por exemplo, de Saddam Hussein no Iraque, mas poderiam ser usados argumentos semelhantes para ambos caso houvesse mudanças de regime. Como definir essa diferença? É sequer possível?
Acho que tem razão, é impossível. É muito difícil haver uma doutrina com base na legitimidade do governo, principalmente quando são estrangeiros a definir essa legitimidade. A família real saudita não é eleita, fazem coisas más como matar jornalistas. São um governo legítimo? São reconhecidos por toda a gente. Putin também é muito popular na Rússia. Saddam foi popular durante muitos anos. Foi, aliás, adorado pelo Ocidente e foram lhe dadas armas enquanto lutava contra o Irão. Uma determinação externa do que é legítimo ou ilegítimo não funciona.
Se achamos que uma dívida é ilegítima, como funciona o processo? O que faz um país?
Não é uma questão de desafiar a legitimidade. É uma questão de determinar prioridade. A Rússia tem 600 mil milhões de euros em ativos, dos quais cerca de 300 mil milhões estão congelados. Há muitas pessoas que podem reivindicar pagamentos com esse dinheiro. Uma pergunta que está a ser feita em todas as capitais ocidentais é quem tem prioridade sobre esses ativos. Quem emprestou a Vladimir Putin após a invasão da Crimeia? É interessante, porque nos documentos dessas obrigações, a Rússia avisa que poderia ser sujeita a mais sanções. Como a dizer “podemos fazer mais coisas más, portanto estão avisados”. Essas pessoas devem ser pagas em primeiro lugar? Ou devem receber primeiro os governos europeus que estão a receber refugiados ucranianos? Ou os ucranianos que se endividam para lutar contra os russos? É necessário determinar que dívidas são pagas em primeiro e em último lugar. E é aí que o conceito de dívidas odiosas entra em jogo. São perguntas para as quais a lei internacional não dá resposta clara.
Uma pergunta que está a ser feita em todas as capitais ocidentais é quem tem prioridade sobre esses ativos. Quem emprestou a Vladimir Putin após a invasão da Crimeia? É interessante, porque nos documentos dessas obrigações, a Rússia avisa que poderia ser sujeita a mais sanções. Como a dizer “podemos fazer mais coisas más, portanto estão avisados”
A Ucrânia tem bons argumentos legais para se recusar a pagar essa dívida?
Sim, têm. Na verdade, ganharam um recurso e o caso agora está no Supremo.
E pode abrir um precedente?
Não. O tribunal decidiu de uma forma muito limitada. A Ucrânia argumentou que foram governados por um ditador e, na realidade, esse dinheiro foi pedido sob pressão, com uma arma apontada à cabeça. E o tribunal aceitou que, sim, estavam ameaçados por uma invasão russa.
Embora uma conquista da Ucrânia pareça hoje improvável, não é certo que o seu território se mantenha como o conhecíamos. Como é que isso pode afetar a dívida do país?
Não é nada claro. Temos de determinar as regras. Quando conquista outro país, fica com as dívidas dele. Foi isso que aconteceu em 1898, quando os EUA ocuparam Cuba. Mas o que acontece quando se toma 20% do país? Ou quando ocupa esses 20% e instala aí um governo fantoche? Fica com responsabilidade sobre essa dívida? Ou fica esse governo fantoche? Ou não assume nenhuma responsabilidade? São questões que os sistemas internacionais não tinham de lidar desde a II Guerra Mundial, portanto não tínhamos de lhes responder. Mas a resposta curta à sua pergunta é “não sabemos”.
Mas é provável que se tente argumentar que a Rússia pode ser responsável por uma fatia da dívida ucraniana?
Sim, e se calhar até podem dizer que deve ser responsável por toda a dívida, porque destruiu tantos ativos ucranianos durante a guerra. Estas eram discussões de alto nível após a I e II Guerra Mundial. Durante as negociações de paz, o tópico principal eram compensações, quem deve a quem pelos danos da guerra, quem tem responsabilidade pelas dívidas. Costumavam ser tópicos importantes, particularmente na Europa. Mas toda a gente que participou nessas discussões já está morta. São questões em aberto. No mundo pré-II GM, eram decididos por via diplomática. Hoje, era suposto estarmos numa era moderna, em que as coisas são decididas pelo Estado de Direito. Mas nós não sabemos qual é a lei.
A 11ª maior economia do mundo parece dizer que não cumpre essas regras. Temos visto notícias de compra de dívida russa por fundos abutres. É possível que Moscovo não pague essas dívidas sem depois enfrentar as consequências que seriam de esperar?
Claro. A consequência é ser mais difícil pedir dinheiro emprestado. As pessoas tentarão processar a Rússia e controlar os seus ativos, mas se os tiver escondido isso pode ser difícil. A Rússia entrou em incumprimento em 1917/18, um dos maiores defaults que o mundo já viu. Essas dívidas ainda não foram pagas. Portanto, podem fazê-lo novamente.
Ironicamente, a vaga de sanções e limitações que o Ocidente está a aplicar à Rússia pode ajudá-la a justificar o incumprimento, dizendo que está a ser isolada e que, mesmo que quisesse, não consegue pagar?
Sim. Há uma bela ironia aí. Eles podem argumentar isso. Aliás, acho que os contratos de dívida pós-2014 antecipam essas situações, dizendo em específico que “se formos incapazes de pagar em dólares ou euros, devido a eventos que não controlamos, podemos pagar-vos em rublos”.
Há quem argumente que, indo a tribunal, vão perder e ser penalizados. Não é assim tão fácil?
Não, não é assim tão fácil. Se ler os contratos, eles são muito pró-Rússia. Invulgarmente pró-Rússia.
Se ler os contratos, eles são muito pró-Rússia. Invulgarmente pró-Rússia
Por outro lado, o que acontece à dívida russa se o regime de Putin cair? Não sei se há uma resposta clara, mas o novo governo poderá dizer que algumas dívidas são ilegítimas?
Claro! É um dos cenários. Eles vão dizer que não vão pagar as dívidas de Putin. “Somos os tipos bons.”
Semelhante ao que aconteceu no Iraque, onde houve uma grande reestruturação da dívida?
Exatamente. O novo governo pode até ser composto por pessoas terríveis, mas podem argumentar que aquelas eram responsabilidades de Putin.
Sei que vê no Haiti uma história interessante sobre o conceito de “odious debt”. Pode explicar a relevância desse caso e porque mostra uma forma seletiva de olhar para o conceito?
É interessante, porque essa doutrina foi enquadrada pelos EUA como um líder malvado que faz coisas más num país que é libertado dele. Foi o que aconteceu com Saddam Hussein. Mas no caso do Haiti, o líder era indiferente. Era um tipo poderoso chamado Jean-Pierre Boyer, mas as dívidas tinham sido impostas pelos credores franceses para pagar aos donos dos escravos penalizados pela revolução haitiana. Do ponto de vista académico, o interessante é que o mau ator, neste caso, é o credor, não o governo.
A quantia era enorme e o impacto dessa dívida ainda se sente hoje, certo?
Sim. Eles demoraram 150 anos a pagar. E é incrível que o tenham feito. Pagaram cada cêntimo.
Seria útil existir algum tipo de organização ou mecanismo de aviso para os credores, deixando-os saber que, por exemplo, emprestar à Rússia pode significar não ver o dinheiro em caso de mudança de regime.
Seria útil, se conseguíssemos dizer antes do tempo. Normalmente não conseguimos. Mas seria bom ter essa clareza.
O problema é obviamente definir o que são “maus atores”.
Sim, mas por exemplo com regulações legais quotidianas, aquilo que nós os dois enfrentamos. O Governo pode mudar as regras a qualquer momento. Pode, por exemplo, aumentar ou diminuir o limite de velocidade. Eu não posso argumentar que aceite um emprego que era a 20 minutos de Lisboa e, como agora mudou o limite de velocidade, passei a demorar 30 minutos, o que já é inconveniente. Seria bom sabermos antes do tempo que é bom ou mau, mas podemos não saber até eles matarem gente.
As pessoas que estão agora a comprar mais barato no mercado secundário são piores do que aquelas que compraram originalmente? Não sei
Mas há hoje quem ainda esteja disposto a comprar dívida russa.
Sim. Há as pessoas que compraram originalmente, que são algumas das mesmas que publicitaram grandes investimentos em obrigações verdes. Acho que até a cidade de Moscovo emitiu títulos verdes recentemente. As pessoas que estão agora a comprar mais barato no mercado secundário são piores do que aquelas que compraram originalmente? Não sei. São perguntas abertas e interessantes. Só porque não temos respostas claras não significa que devêssemos pensar nelas.
Até porque teremos de responder até ao final da guerra.
Sim. Mas é importante saber a resposta já, ou então os ativos vão desaparecer.