A sucessão de crises na transição para a década passada – da falência do Lehman Brothers à entrada da troika em Portugal – obrigaram os cidadãos de todo o mundo a cursos flash de Economia para perceber o que raio se estava a passar à sua volta. Mas não foram apenas os leigos que tiveram de aprender qualquer coisa. Ao longo da última década, os economistas também tiveram de se adaptar. Verdades que tinham como indisputáveis foram desafiadas, medidas julgadas irrealistas foram colocadas no terreno e a disciplina diversificou-se. A Economia chega a 2020 muito diferente.
Talvez nenhuma novidades seja tão relevante como o aprofundamento do estudo sobre as desigualdades. A maior atenção dada a esse tema foi citada por 3 dos 5 economistas com quem falámos. Ricardo Reis, professor da London School of Economics, elege “os progressos na medição das diferenças entre pessoas (ou desigualdades), dos fatores que as determinam e do efeito que têm noutras variáveis” como a principal mudança na área da mensuração e aplicação económica dos últimos dez anos.
É um daqueles campos que consegue a proeza de ter agitado as ruas, os corredores da academia e os gabinetes dos políticos. Foi marcado por dois movimentos paralelos. O desenvolvimento de movimentos como o “Occupy Wall Street” – que produziu provavelmente o slogan económico da década, com “we are the 99%” – e o reforço das fileiras de académicos que se dedicaram a colocar o tema no centro do debate público e a propor novas medidas para o atenuar. Nessa segunda via de atuação teórica, provavelmente nenhum acontecimento foi tão relevante como a entrada em cena de Thomas Piketty, em 2013.
“Tudo somado, acho que o “O capital no século XXI” do Piketty marca a década na ciência económica. Não tendo sido nem o primeiro nem o último a escrever sobre o tema das desigualdades, foi o que mais marcou a discussão e mais contribuiu para pôr o tema no centro dos debates académicos e políticos”, explica Ricardo Paes Mamede, professor do ISCTE. “E a perceção das desigualdades como um problema social e económico e como um desafio político é uma das mudanças centrais que se verificaram na década.”
Como Ricardo Reis referiu antes, essa maior atenção dada ao tema só foi possível porque agora conhecemos melhor a sua relevância. Esse aprofundamento dos dados é sublinhado por Susana Peralta.
“Antes estudava-se a desigualdade, mas havia muita coisa descritiva e poucos dados ricos como os que há hoje em dia. Era mais numa perspetiva de reporting do que de investigação”, diz à EXAME a professora da Nova SBE. “Mas a qualidade das coisas que se podem fazer hoje em dia, relacionando a desigualdade com resultados não só de rendimento, como de comportamentos de risco, saúde, esperança de vida, transmissão inter-geracional de uma série de skills, etc. voltou a permitir que a desigualdade fosse um tema de investigação avançado e reconhecido.”
Piketty não esteve sozinho ao longo destes anos. Susana Peralta refere a publicação de “Inequality – what can be done?”, por Tony Atkinson, em 2015, a atribuição do Nobel da Economia a Angus Deaton no mesmo ano, o lançamento do World Inequality Lab e o nascimento do Opportunity Insights, por Raj Chetty, que “trouxeram uma revolução na forma como as bases de dados administrativas permitem olhar para a desigualdade”.
Hoje, as principais faces da Economia – pelo menos na sua dimensão mediática – também parecem mais encostadas à esquerda. De estrelas como Paul Krugman até ao grupo de académicos que costuma publicar com Piketty, como Emmanuel Saez e Gabriel Zucman. “Nos anos 70 e 80, economistas libertários como Milton Friedman concentravam a luz dos holofotes e dominavam a discussão política, enquanto [economistas] conservadores e especializados na oferta enchiam os think tanks de Washington”, escreve Noah Smith, na Bloomberg. Isso mudou. “A Economia já foi conhecida como uma ciência conservadora, mas já não é assim.”
A crise e a recuperação relativamente frágil que se lhe seguiu terão algo a ver com essa transformação, que já começa a influenciar diretamente as políticas públicas. Elizabeth Warren, uma das principais candidatas à nomeação democrata à Presidência dos EUA, propõe a criação de um imposto sobre fortunas, cujo desenho foi executado com a ajuda do já referido Gabriel Zucman, entrevistado recentemente pela EXAME. Quase todos os candidatos democratas sugerem algum de agravamento fiscal sobre os mais ricos. Os impostos estão a regressar ao centro das políticas públicas, depois de décadas de seguir o mantra de “quanto mais baixos, melhor”.
Bancos centrais agressivos
Outra das mudanças citadas pelos economistas foi o que aconteceu com os bancos centrais, que esticaram os seus limites de intervenção na economia para território nunca antes explorado. Joaquim Miranda Sarmento, professor do ISEG, classifica “a política monetária do BCE e FED, com o programa de compra de ativos e taxas de juro zero ou negativas” como o “acontecimento económico da década”.
Com a política orçamental dos Estados altamente constrangida pela fragilidade das suas contas públicas, pressão dos investidores e opções ideológicas, foi a atuação dos bancos centrais que permitiu atenuar a crise e manter a economia à tona nos últimos anos.
Na Zona Euro, esse impacto foi ainda mais visível. A política expansionista e de compra de ativos de Mario Draghi foi acompanhada em julho de 2012 por três palavras mágicas – “whatever it takes” -, num discurso que muitos veem como o momento de viragem para a crise da moeda única. “As novas políticas não-convencionais adotadas pelo BCE e pelos outros bancos centrais no mundo fora [foram] arrojadas, tiveram grande impacto e mudaram a prática da política monetária para o futuro”, sublinha Ricardo Reis.
A década chega ao final com a sensação de que atingimos o limite dessas políticas. O crescimento prolongou-se, mas manteve-se em níveis muito baixos, assim como a inflação e os juros. A recuperação que estamos a viver não se parece com nenhuma outra que já tenhamos vivido. A descida do desemprego não está a dar lugar a uma aceleração dos preços e, no ano passado, os investidores chegaram a emprestar à Alemanha a 30 anos com juros negativos (!). Alguns dos motivos que diferenciam esta retoma são estruturais – como o envelhecimento da população -, mas várias instituições internacionais têm sublinhado a necessidade de uma política orçamental mais ativa, que volte a puxar pela economia.
Evolução académica
Dentro da própria ciência económica, as engrenagens mexeram-se um pouco e algumas correntes ganharam mais peso. Ricardo Reis, por exemplo, refere “os grandes avanços na compreensão do papel dos mercados financeiros e instituições financeiras na macroeconomia”. Outra tendência que é impossível de ignorar é o maior peso da economia comportamental, que é hoje muito mais relevante do que há dez anos.
“O maior desenvolvimento na ciência económica, na última década, foi a progressiva incorporação de elementos comportamentais, alguns importados da psicologia, na sua vertente instrumental, outros desenvolvidos pela própria ciência económica”, explica José Tavares, também professora na Nova. “Importante porque se relativizou uma visão mais mecanicista, limitada, do comportamento humano. Uma visão que se herdou do iluminismo e de um certo fascínio pela engenharia social, e que tem óbvias limitações.”
Como ilustrava o Nobel da Economia, Richard Thaler, à VISÃO: isso passa por deixar de encarar o Homem como o Spock, de Star Trek, e mais como Homer Simpson. Talvez não tão idiotas como a criação de Matt Groening, mas algures “entre Spock e Simpson, acho que estamos mais perto do Simpson”.
Se assumirmos que atuamos sempre como agentes racionais, vamos cometer erros de análise. Por exemplo, quando olhamos para a crise financeira. “Os bancos dizem que são inteligentes e que não precisam de ser regulados. Mas é claro que cometeram muitos erros. Fizeram empréstimos que não deviam ter feito e criaram títulos que estavam desenhados para falhar”, refere. “Mais importante: quando as pessoas se comprometem com um crédito à habitação, têm capacidade para fazer uma escolha inteligente? Ou devemos tornar isso mais fácil? O problema não é que as pessoas sejam estúpidas, o mundo é que é difícil.”
Como é que isso muda a forma como pensamos sobre Economia? José Tavares menciona a “integração das surpresas e idiossincrasias do comportamento humano, que afetam os mercados e as sociedades”, assim como a “decisão com informação limitada, as dificuldades de coordenação, a diversidade de preferências e a relativização do material e do óbvio nas decisões dos agentes”.
“Não revoga muito do conhecimento adquirido, mas matiza-o, dá-lhe foco, e oferece novas interpretações”, acrescenta à EXAME. “É um dos elementos presentes no trabalho dos três economistas vencedores do Nobel deste ano, mas vai muito além disso. Influencia as áreas mais dinâmicas da ciência económica.”
A atribuição do Nobel da Economia de 2019 a Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer foi também um sinal de que a Economia se tornou mais empírica. Há cada vez mais papers a utilizar experiências e randomized control trials (estudos de controlo aleatório). Vive-se uma espécie de “revolução de credibilidade”.
A saída da troika
De uma perspetiva nacional, faz também sentido mencionar o programa de ajustamento. A entrada da troika em Portugal foi um momento marcante para a economia do país. Um período onde nasceram medidas de austeridade que ainda estão hoje no terreno e reformas que, tão cedo, não serão revertidas.
Não cabendo aqui a discussão dos méritos ou deméritos do programa e da gestão feita pelo Governo PSD/CDS, a verdade é que a saída do mesmo foi um acontecimento importante, que muitos duvidaram que fosse possível no timing previsto (lembram-se do mega-relógio de Paulo Portas?).
Joaquim Miranda Sarmento considera que “o cumprimento do programa de ajustamento e a saída com sucesso do mesmo, permitindo a Portugal regressar ao financiamento nos mercados externos, ao crescimento e à criação de emprego” foi o “acontecimento económico da década” no nosso País.
Foi uma década intensa, com muito mais mudanças para referir. Por exemplo, começam a ouvir-se mais vozes a questionar a ideia de que, no comércio internacional, a abertura de mercados deve ser uma regra universal. Embora na China certamente ninguém se queixe dos resultados da globalização, na Europa e nos EUA o ceticismo aumentou.
Os economistas parecem também menos desconfiados de subidas do salário mínimo, mais preocupados com poder dos monopólios e (finalmente) dispostos a dar mais atenção ao sexismo que existe na profissão.
Paradoxalmente, sublinha Noah Smith, o progresso conseguido na ciência está a ocorrer numa altura de menor influência da mesma. “A crise financeira e a recessão devastadora que lhe seguiu desacreditaram a disciplina aos olhos de grande parte do público”, escreve. “Os economistas continuam a fazer bom trabalho – melhor do que nunca, na realidade -, mas a sua influência nos corredores do poder pode demorar décadas a recuperar.”
Veremos se será já nesta.