Eles chegavam, eles ajudavam como podiam, eles conversavam.
E, quando estavam de saída, lá vinha a mesma pergunta: “Vocês voltam amanhã?” Imaginamos Pedro Queirós e Lourenço Macedo Santos a sorrir e a responder umas vezes “sim”, outras vezes “não”, como podiam. Porque querer voltar, queriam sempre.
Quase um ano depois do terramoto que mudou os seus planos de férias e de vida, os dois portugueses atropelam-se, num café em Lisboa, a rebobinar o passado e a prever o futuro.
Estão entre reuniões com duas das várias empresas e instituições a quem andam a apresentar o novo projeto da Associação Obrigado Portugal. Pedro tem avião de regresso ao Nepal na terça, 26, Lourenço em setembro. Aproveitam estes dias juntos para falar da campanha de angariação de fundos (no site da Associação Obrigado Portugal e no Facebook) e explicar por que razão precisam tanto que os ajudem a ajudar.
“Nós sozinhos não somos nada nem ninguém”, resume Lourenço, os olhos a prenderem quem o ouve. Mais pausada, Maria da Paz Braga mete a colherada na conversa dos amigos, enquanto passa uma mão distraída pela barriga. No verão nasce a Madalena, uma notícia que ganha outro valor quando contar que, há um ano e picos, ela e o marido decidiram viajar uns meses pela Ásia porque não estavam a conseguir ter filhos.
A ARQUITETA QUE FALTAVA
Foi uma coincidência feliz Maria da Paz e o marido, Walmyr Freire, regressarem ao Nepal na altura em que Pedro e Lourenço queriam avançar com a construção de casas semipermanentes para quem ficara sem teto. A arquiteta portuguesa e o geólogo brasileiro tinham voado para o Butão duas horas antes do terramoto e, em meados de maio, voltavam porque já não lhes fazia sentido continuarem a fazer turismo depois de lerem os posts que Pedro ia publicando no Facebook.
Não eram os primeiros voluntários a juntarem-se aos dois amigos que a VISÃO pôs na capa da edição a seguir à tragédia. Nem seriam os últimos. Num ano, foram 70 a oferecerem os seus préstimos, 90% deles portugueses. “Eram as pessoas certas, no momento certo”, conta Pedro.
“Sempre tivemos o vento pelas costas.”
CONTRA OS ABRIGOS-DE-ZINCO
Margarida Leal sabia que iria ao Nepal quando viu as imagens da destruição que matou mais de oito mil pessoas e desalojou quase três milhões. Era só fazer uns exames e meter-se-ia num avião, foi avisando Pedro e Lourenço, amigos de um amigo de um amigo seu. Há doze anos a trabalhar na banca de investimento, em Madrid, era a primeira vez que decidia experimentar o voluntariado.
Aterraria em Katmandu no dia 31 de julho, pronta a fazer o que fosse preciso.
Por esses dias, os portugueses já tinham terminado a fase da Ajuda Imediata (“Dar nomes aos bois é herança da Gestão”, justificam) e dividiam-se entre o Campo Esperança, montado a 16 de maio, e o Projeto Saudade. A primeira pedra das 22 casas deste último fora colocada a 1 de junho; Maria da Paz passara as duas semanas anteriores a desenhá-las, numa cave.
Margarida, que nunca tinha feito nada com as mãos, passou 70% do tempo na construção. No resto do tempo ia para o Campo Esperança, onde se espantou com a organização. “Além das 18 tendas para as 350 pessoas que ali moram, há uma cozinha comunitária, centro médico, tempo, salas de estudo, despensa, escritório. Foram contratados um tutor para ajudar nos trabalhos de casa, uma professora de manualidades, um professor de dança.
E dão-se cursos técnicos aos adultos. Se formos aos outros campos de deslocados [montados por ONG internacionais], as pessoas mal têm o que comer.” As 22 casas, que ficaram prontas em dezembro, foram revestidas a bambu mas podem ganhar paredes de tijolo. Já houve nepaleses que as aumentaram e transformaram, garantindo que vão ali ficar uns quinze anos, porque não? E também já houve quem tivesse sido contratado para construir mais casas numa vila vizinha.
Pedro, Lourenço e Maria da Paz rejubilam a contar tudo isto não dá para disfarçar o orgulho. Mas querem mais.
Aliás, já estão a fazer mais. Estão um passo à frente das ONG calejadas na ajuda internacional, que chegaram ao Nepal de folders com abrigos-de-zinco-prontos-a-montar, “por vezes em troca da cristianização”.
Walmyr terminou um estudo geológico há um mês, enquanto as autoridades locais só agora debatem a necessidade de avançar com esse trabalho.
Sem o estudo não poderiam arrancar com o novo projeto da Associação Obrigado Portugal: a Our Dream Village, 222 casas definitivas para albergar 1 200 pessoas, com construção antissísmica, energia solar, biogás e fundações capazes de aguentar um segundo piso, no futuro. Os nepaleses vivem com a família alargada; é costume os filhos-homens continuarem a morar com os pais depois de casar.
É para esta nova vila, que sonham construir em Tatopani, no distrito de Sindhupalchowk, que precisam da ajuda portuguesa.
Dos voluntários, claro, quando se avançar no terreno, mas, para começar, de fundos. Cada casa custará quase 12 mil euros, muito pouco para os nossos padrões e demasiado para o Nepal, pensamos alto e logo ouvimos: “A dignidade que queremos dar às pessoas não é negociável.” Fala-se, então, de construções feitas para durar gerações, de uma vila completamente sustentável, da vantagem do biogás num país onde há muito gado e do preço dos materiais que subiu quase 50% neste último ano. A região tem plantações de arroz de um verde impossível, um rio a passar no vale e os picos dos Himalaias ao lado. E também estradas de terra batida, a dificultar os trabalhos. “Imaginem o local mais rural e mais bonito do mundo. É lá.”
OS 11 878 KM NA MOTA DO ARTUR
Uma das grandes fontes de rendimento do povo, maioritariamente sherpa, era o turismo. Mesmo ali havia um restaurantezinho, uma loja de gorros. Agora não há nada, só miséria. Por isso, que ninguém diga a Pedro, Lourenço e Maria da Paz e agora também à arquiteta Francisca Bastos, country manager da associação que sonham alto de mais. “A frase que nos define melhor é uma que vimos numa parede: ‘They thought it was impossible so they did it'”, diz Lourenço.
Talvez por isso não tenham estranhado quando Artur Brito lhes contou o seu plano: ir numa mota 125 cc de sua casa, em Faro, até à entrada do Campo Esperança.
Por cada um dos 11 787 km que percorrer entre os dias 25 de abril e 10 de junho, o português, que perdeu uma perna num acidente de mota, espera angariar 1 euro (no final, é o preço de uma casa). A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa anunciou que vai apoiá-lo e Artur irá entrar na nova telenovela da SIC, Rainha das Flores.
Tudo para já não haver dúvidas na resposta à pergunta “Vocês voltam amanhã?”, que é também o título do livro que Pedro e Lourenço escreveram e será lançado pela Âncora Editora, em maio. Eles podem estar em Portugal por estes dias, mas os seus corações nunca mais saíram do Nepal.