À chegada, Filipe Lopes recebe um chapéu, porque dele esperam magia não uma fuga literal, mas um escape, pela poesia. Ou como ele diz, “uma bebedeira de letras, com menos efeitos secundários do que os outros vícios que os conduziram às celas”. Numa sala de aula da Penitenciária de Lisboa, há perto de 30 presos a aguardar com expectativa o momento, como se ele, Filipe, fosse tirar poemas da cartola. “Faço-o, porque há muitos anos li um texto que fez a diferença na minha vida”, explica-se o contador profissional de histórias, 36 anos, sobre levar poemas às cadeias portuguesas.
No quadro, a frase A Poesia Não Tem Grades. Nas paredes em volta, um cartaz acerca dos direitos humanos “Lê e divulga, quem sabe a humanidade sai do papel” e mapas do mundo e do nosso corpo. É março, mês da poesia, e a sessão começa por celebrar os seus autores. “Ser poeta é.”, e as estrofes seguintes são logo reconhecidas, mesmo por quem, entre a audiência, levantou a mão para assinalar que gosta de futebol e música, mas não de ler e muito menos poemas. Filipe troca-lhes as voltas: “Quem conhece a canção dos Trovante, gosta de poesia!”
BEBEDEIRAS DIVERSAS
Conquistada a plateia, Filipe Lopes recita-lhes uma ementa diversa, que inclui Mário Cesariny, António Lobo Antunes ou António Gedeão. Incontornável, para o declamador, é Na Hora de Pôr A Mesa, de José Luís Peixoto porque fala de pratos sem dono sobre a toalha. E quem ali está também falta à mesa de alguém. Mas, sobretudo, Filipe puxa pelo poema que mudou a sua própria vida: Devemos Andar Sempre Bêbados, de Charles Baudelaire, explicando-lhes que tanto pode ser de vinho, de virtude ou de poesia.
Das janelas, vê-se um pátio, roupa num estendal e gente a deambular. Filipe já agarrou outro poema, diz-lhes que “o passado é inútil como um trapo”, verso de Adeus, de Eugénio de Andrade. E outro: “Uma nêspera deitada, descansada, em cima da cama, a ver o que acontecia”, arranque de Rifão Quotidiano, de Mário-Henrique Leiria, para lhes contrariar o conformismo. E mais um, depois de interpelar o guarda, no fundo da sala: “Não leve a mal.”, para colocar de novo a voz, “Avisam-se todas as polícias, fugiu um homem…”, versos de Chamada Geral, igualmente daquele autor.
Depois, uma surpresa, quando um dos ouvintes se levanta, com um papelinho na mão: “Como pode o ser humano adaptar-se à situação.” O recluso Paulo Rocha, 40 anos, confessa que, na noite anterior, se sentira inspirado pela sessão que aí vinha e alinhavara aquelas palavras. No fim, as palmas soam ainda mais fortes.
Para Filipe Lopes, não há melhor sensação, ele que começou a declamar em prisões em 2004. Formado em Psicologia, o rosto do projeto Contador de Histórias não tem dúvidas: “Faço mais pela saúde mental das pessoas lendo-lhes poemas do que no meu gabinete a dar consultas.” Em pouco mais de uma hora, prova-se a máxima do chileno Pablo Neruda: “A poesia não é de quem a escreve mas de quem dela necessita.”
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Convocar emoções
Algumas escolhas poéticas de Filipe Lopes para libertar os prisioneiros
Devemos Andar Sempre Bêbados
Charles Baudelaire
Na Hora de Pôr A Mesa
José Luís Peixoto
Rifão Quotidiano
Mário-Henrique Leiria
Adeus
Eugénio de Andrade