Ninguém me contou. Eu estava lá. Foi há três anos, durante uma viagem de lazer. Calhei num daqueles grupos, organizados para as visitas guiadas a monumentos. A Irene andava de banco em banco, no autocarro, a falar com as pessoas: se não se importarem, por favor, tragam-me os lápis do vosso quarto de hotel, sim? Num ápice fiz o filme. Todo distorcido, mas fiz o filme. Faz coleção de lápis, pensei. E, logo a seguir, que não.
Não fazia sentido, ter tantos lápis repetidos, como se fossem cromos para trocar. E no minuto seguinte, a Irene explicou: são para as minhas crianças. Elas comem lápis, sublinhou com um sorriso terno. Afiam-nos até ao tutano. Desenham imenso, fazem os trabalhos de casa e, muitas vezes, não temos dinheiro para comprar material escolar.
Um dia, se tiverem tempo, passem por lá, pela nossa Casa. Visitem-nos. Estamos na Rua dos Caldeireiros, no Porto. E um dia, passei por lá, pela Casa Jovem. Quatro pisos cheios de futuro, sonoro e colorido. Mas incerto e comprometido, em muitas vertentes, que deviam ser garantidas.
Atraídas pela história dos lápis, outras pessoas dessa mesma viagem, também passaram e ficaram. Como voluntários. Hoje são 25. Uns dão explicações, outros ensinam inglês, matemática, o que estiver de acordo com as necessidades de um centro de atividades de tempos livres. Porque há um mundo de coisas por fazer e para fazer por aquelas crianças.
A Casa Jovem é uma estrutura gerida pelo Centro Social e Paroquial Nossa Senhora da Vitória (CSPNSV), a três passos da Torre dos Clérigos. Muito fácil de encontrar. Acolhe 70 crianças, 30 não têm qualquer apoio económico. Nenhum. Nem público, nem estatal. E enquanto não há outra solução, é preciso agir.
São crianças com idades entre os 6 e os 10 anos que se não estivessem ali, estariam na rua. Depois da escola, não teriam para onde ir, nem com quem ficar. A freguesia da Vitória é formada, na sua maioria, por uma população pobre, excluída, com comportamentos desviantes, sem família constituída e idosa. 70% das crianças que frequentam o CSPNSV não têm família estruturada e/ou são filhos de mães adolescentes e mães solteiras.
Deixá-las sem uma resposta, estava fora de causa. Seria um crime social, como ouvi dizer ao Padre Jardim Moreira, homem habituado a estar onde mais precisam dele.
Foi com o intuito de poder manter o seu acolhimento que foi criado, há três anos, o projeto “Um padrinho, um amigo” que visa tão só encontrar pessoas e/ou empresas que possam comprometer-se a dar entre 10 e 50 euros mensais. Para comprar materiais escolares e não só. No momento, por exemplo, há muitos lápis, mas falta papel. Até pode ser de rascunho, diz a Irene. E diz também, agora, com a voz brilhante como berlindes, que já têm um parque infantil.
Há muito pouco tempo, não tinham uma estrutura lúdica, com escorrega, baloiços e balancés. Bens essenciais a qualquer criança. Bem sei que como estas, outras crianças por este país fora, por este mundo adentro precisam de quem as apoie, de quem as acolha, de quem lhes dê lápis, papel, baloiços, colo, beijos, abraços e outros mimos.
Bem sei que, felizmente, como esta, há por aí outras Irenes que nem a milhares e milhares de quilómetros de Casa, pousam as asas com que trabalham diariamente. Mas a tendência, pelo menos a minha, é falar do que sei, do que conheço. E, talvez, este projeto, tão simples, escondido no coração do centro histórico da Invicta, possa inspirar outras iniciativas similares, onde a sociedade civil tenha o papel principal. E, se falarem com a Irene e com a sua equipa, seguramente, saem mais confiantes e reconciliados com as adversidades do dia-a-dia.
Por mim, fiquei com a noção clara de que não precisamos ir longe para ajudar. Na nossa terra, no nosso bairro, na porta ao lado, podemos ser úteis. Se quisermos. Bem sei que não é tão romântico como ir para muito, muito longe. Mas é muito realista e necessário.
O certo é que não é preciso transpor fronteiras para ajudar. Basta transpor a soleira da nossa porta. E está encontrada a missão. Nem que seja a missão daquele dia.Baixar os braços, deixar de acreditar ou de pedir papel para pintar sonhos é que está, em bom rigor, fora de causa.