Pouco passa da uma da tarde e na ilha de Husoy, situada a mais de 1700 quilómetros de Oslo, no Norte da Noruega, a noite já caiu. No pequeno porto pesqueiro, situado junto à fábrica de transformação de bacalhau, a quase centenária BR Karlsen (fundada em 1932), o novo barco híbrido conduzido pelo capitão Henrik Meland sai para as águas geladas do mar Ártico para tentar a sorte de pescar “o fiel amigo”, pela terceira vez nesse dia. “As três semanas anteriores foram para esquecer”, lamenta-se Henrik, com 30 anos. A chuva e a neve intensas dos últimos dias impediram que tanto ele como os seus pescadores se fizessem ao mar.
Estamos nos primeiros dias de dezembro e a época da pesca do bacalhau ainda nem sequer começou – a estação vai de janeiro a abril. Mas aquela madrugada, pelas cinco da manhã, revelou-se “na melhor dos últimos tempos”. “O céu ficou mais limpo e conseguimos pescar cinco mil quilos de peixe: 1500 de bacalhau, três mil de arinca e 500 de pregado”, contabiliza o capitão, enquanto regressa de novo ao mar. “Vamos ver se agora encontramos mais bacalhau dentro do fiorde [na ilha de Senja, a segunda maior da Noruega]”, diz-nos, de olhar atento nos dois grandes monitores com sondas que indicam a possibilidade de encontrar cardumes no fundo do oceano, e entre as montanhas cheias de neve. “Na época oficial de pesca, num dia normal consigo 20 toneladas de bacalhau. Mas o meu recorde foram 63 toneladas”, conta-nos, orgulhoso.
São quatro da tarde, é noite cerrada e regressamos a terra de mãos a abanar. “Por vezes, poderemos passar aqui três, quatro horas, sem conseguir nada [a pesca é feita à linha, com um cabo e vários anzóis]. Mas vamos a casa dormir um pouco e voltaremos daqui a umas horas”, atira Henrik Meland, sem ponta de desânimo.
A resiliência do capitão de um dos barcos pesqueiros de Husoy coincide com a dos habitantes desta pequena ilha isolada, cheia de neve e quase sempre com temperaturas negativas (demora cerca de 25 minutos a percorrer-se), onde moram 300 pessoas, 25 das quais são portugueses – já lá iremos. Todos vivem ali por uma razão: o bacalhau. Um dos peixes mais consumidos pelos portugueses (ver caixa), salgado seco, com diferentes tempos de cura, demolhado ou, em quantidades residuais, fresco, que entrou na nossa gastronomia desde o tempo dos Descobrimentos. “Adoro esta Natureza. Temos a melhor costa de bacalhau do mundo e a sorte de o ter tão perto”, reforça Henrik que, numa das últimas visitas a Portugal, conta-nos ter provado pela primeira vez os nossos bolinhos (ou pastéis) de bacalhau. “São deliciosos”, diz-nos, em inglês.
O motor da economia de Husoy
É das águas gélidas do mar da Noruega, próximo do Círculo Polar Ártico, que chega à mesa 70% do bacalhau consumido pelos portugueses – Portugal consome cerca de 170 mil toneladas por ano, segundo dados do Norwegian Seafood Council (NSC), organização que representa os exportadores de peixe da Noruega. “Portugal é o nosso maior mercado de exportação de bacalhau. Há uma grande tradição de consumo, é um peixe que está no ADN dos portugueses”, realça Trond Rismo, o norueguês representante em Portugal do NSC e que, desde que vive em Lisboa, já aprendeu a fazer bacalhau à lagareiro para a família, o seu favorito.
Daí a importância do nosso país para a economia de Husoy, este ilhéu situado a pouco mais de 50 quilómetros de Tromso, no extremo norte da Europa (acima da Islândia), movido pela empresa produtora de bacalhau salgado verde (meia cura) de Rita Karlsen, 55 anos, a terceira geração da família à frente da BR Karlsen, que, entretanto, também se tornou na primeira produtora de salmão de aquacultura da Noruega.
Nesta empresa que emprega 100 a 130 trabalhadores de 21 nacionalidades (a maioria é portuguesa), a próxima temporada da pesca do bacalhau já terá a funcionar em pleno a máquina de grandes dimensões que trata de todos os processos do peixe, desde que sai dos barcos: é lavado e escalado, são-lhe retiradas as cabeças, as caras, as vísceras, as ovas… Na fábrica é feita uma primeira maturação: três a quatro dias numa primeira fase, à qual se acrescentam mais 10 dias, nos quais o bacalhau é colocado em camadas intercaladas de sal, e outras duas semanas em que fica a maturar em paletes. O processo final de cura (que pode chegar até aos nove meses) é feito já nos países de exportação, nomeadamente em Portugal, nas várias indústrias de transformação do bacalhau.
Um dos maiores desafios do setor, porém, tem sido a diminuição das quotas de pesca – os cientistas desconhecem a razão pela qual os peixes se estão a reproduzir menos nas águas frias do mar de Barents –, mas assim deverão continuar, pelo menos, até 2027. No caso da Noruega, por exemplo, em 2025 só poderão ser pescadas 9 217 toneladas de bacalhau e este número deverá baixar um pouco mais em 2026, estimando-se que a quota volte a aumentar no ano seguinte.
O bacalhau em números
170
Mil toneladas
Consumidas por ano pelos portugueses (70% do bacalhau é oriundo da Noruega)
4,5
Quilos de bacalhau consumido por cada português / ano
Se tivermos em conta de que são necessários 3,65 kg do peixe inteiro para produzir um quilo de bacalhau seco, cada português consome em média 16 kg de bacalhau por ano
2022
Ano recorde de exportações de bacalhau da Noruega para Portugal
Cerca de 50 mil toneladas foram exportadas, tendo sido um dos melhores anos desde 1988
35%
Das exportações totais de bacalhau da Noruega são para Portugal
O nosso país é o principal consumidor, seguido da Dinamarca e do Reino Unido
9 217
Número de toneladas fixadas na quota de pesca para 2025 nos mares da Noruega e Barents
Para 2026 prevê-se que a quota continue a baixar, devendo aumentar em 2027
A consequência mais direta será, obviamente, o preço. Por cá, nos últimos dias, a Associação dos Industriais do Bacalhau (AIB) deixou o alerta: o valor médio já ultrapassou, em muitos casos, os 20 euros por quilo e “pode chegar a níveis de luxo, como 40 euros por kg, já em 2025”. “Vai ser um desafio tanto para nós como para os portugueses”, antecipa o Norwegian Seafood Council, já que, numa lista de dez países, Portugal é o maior consumidor de bacalhau, seguido da Dinamarca e do Reino Unido.
A sustentabilidade é um dos fatores-chave da pesca na Noruega e, por conseguinte, na BR Karlsen. Além de o comercializar salgado verde, todas as partes do bacalhau são aproveitadas e exportadas para diferentes países, de acordo com a sua cultura gastronómica: ovas para o Japão (usadas no sushi e caviar), cabeças secas para o mercado africano (para sopas), espinha dorsal para a China… além do fígado que é transformado em óleo rico em vitamina D e em Ómega 3, por uma outra empresa dos Karlsen. “É fácil para nós pensar na sustentabilidade. Vivemos na Natureza, trabalhamos com a Natureza e dependemos da Natureza. Ao mesmo tempo, temos de cuidar das comunidades locais porque são as pessoas que trabalham na fábrica. Dependemos uns dos outros”, sublinha a empresária Rita Karlsen.
Mais tempo para a família
“Vivemos
na Natureza,
trabalhamos
e dependemos
da Natureza.
Dependemos
uns dos outros”,
diz Rita Karlsen
Após ter vindo trabalhar para Husoy durante duas épocas de meio ano cada, para a transformação de bacalhau na BR Karlsen, José Sousa, 40 anos, acabou por trazer a mulher e as duas filhas, com 12 e 10 anos, em agosto último. O casal decidiu trocar a pequena freguesia de Castelo da Maia, na Maia, por esta ilha longínqua e gelada da costa norte da Noruega em troca de “uma maior estabilidade financeira”.
Em Portugal, José trabalhava numa empresa de sensores de fibra ótica, e ganhava mais uns trocos numa empresa de transportes à noite para equilibrar as contas. Já a mulher, Rosa, 42 anos, estava na área de gestão de cinemas, mas “as saudades das miúdas com as ausências do pai” convenceram-na a trocar Portugal por Husoy. Na ilha, Rosa trabalha na empresa de salmão dos Karlsen: “No início foi difícil, nunca tinha mexido em peixe”, confessa. Mas o tempo que ganhou para as filhas, Eva e Ísis, tem compensado. Pelo menos, por agora. “Sinto falta do sol, do dia, mas uma pessoa adapta-se. Lá em Portugal trabalhava por turnos e dormia pouco. Aqui as miúdas vão a pé para a escola, têm mais atividades depois das aulas, as amigas vêm cá a casa… Não há trânsito, chego cedo e estou mais tempo com elas”, nota. E José continua: “Em Portugal, não tínhamos tempo para andar de bicicleta. Aqui foi a primeira coisa que lhes comprei quando cá chegámos em agosto.”
José e Rosa não são os únicos portugueses que se instalaram numa das poucas casas revestidas a madeira (e bem aquecidas no interior) da ilha. Uns vêm só para trabalhar na época do bacalhau – como Guilherme Sombra, 31 anos, de Santa Comba Dão, Viseu, ou José Malheiro, 28 anos, de Braga, que encontrámos na fábrica – e regressam a Portugal lá para junho. Outros como Maria Barata, 35 anos, e o marido, João Correia, optaram por trocar Lisboa por Husoy há mais de uma década. Maria, que trabalha no único supermercado da ilha (o Joker, propriedade dos Karlson) já carrega nos braços o mais novo luso-norueguês da ilha, o seu bebé Kenneth, nascido há quatro meses em Tromso. Regressar a Portugal não está nos seus planos. “Para onde? É verdade que sinto falta das pessoas, do clima, da claridade … Mas o que vou fazer para lá? Está tudo tão mau”, aponta.
O bacalhau e as suas mil e uma receitas
Apesar de o bacalhau não morar nas nossas águas do Atlântico – o peixe só vive em temperaturas muito baixas ‒, é indiscutível que são os portugueses que melhor o sabem cozinhar. Os noruegueses comem-no sobretudo fresco, poucas vezes ao longo do ano e, na época de Natal, muito menos. A tradição na mesa da Consoada passa por comer borrego ou carne de rena, animal criado com esse propósito pelo povo Sami, na Noruega.
Em Oslo, o chefe
de cozinha Carlos
de Medeiros (uma
Estrela Michelin)
serve “uma
cozinha de fusão”
entre Portugal
e a Noruega
Mas em Oslo, há um português (pelo menos) que o sabe confecionar: Carlos de Medeiros, chefe de cozinha no restaurante Bar Amour, aberto em 2023 e que conquistou uma Estrela Michelin em abril deste ano. Com 31 anos, a viver fora de Portugal vai para dez anos, com passagens por restaurantes em Inglaterra e pelo norueguês Maaemo (três Estrelas Michelin, em Oslo) no currículo, Carlos de Medeiros serve um menu de degustação (de 12 a 14 pratos) que é “uma cozinha de fusão” entre a cultura norueguesa e portuguesa.
Quem se sentar no seu restaurante, com apenas 12 lugares, pode saborear, por exemplo, o bacalhau seco fumado com uma emulsão de ostras e uma geleia feita com cabeças de bacalhau; um bacalhau de cebolada confitado em azeite português, servido com um caldo de cebola cozinhado durante três dias a 90 graus; ou, no tempo da pesca, o fresco (skrei) servido com molho de Bulhão Pato. “A ideia não é ser um restaurante português, senão tinha-o aberto em Portugal. É pegar em produtos noruegueses e dar-lhes um toque português”, aponta, confessando não pensar regressar ao país natal.
“Gosto de passar o tempo na Natureza, de apanhar coisas selvagens, de caçar e pescar. Os noruegueses são mais ligados à Natureza e a desfrutar a vida.” E em troca, quem sabe, Carlos de Medeiros pode ensinar-lhes as mil e uma maneiras de cozinhar o bacalhau que pescam nos seus mares.