No início de 2014, quase três anos depois de chegarem a Coimbra vindos de Belo Horizonte, Isabella Gonçalves e Fábio Merladet pareciam levitar com a nova vida académica na velha cidade universitária. Além de partilharem na internet fotos boémias, com cravos, ramos de flores e beijos aparentemente apaixonados, com o aqueduto de São Sebastião em fundo, o casal de namorados seguia enfeitiçado com a sua condição de doutorandos, no mítico Centro de Estudos Sociais (CES).
A aura do orientador ajudava. Boaventura de Sousa Santos, espécie de guru das Ciências Sociais e das teses emancipatórias da esquerda latino-americana, era, para ambos, o pináculo do pensamento. Nesse tempo, quando o sociólogo proferia alguma conferência, os alunos da instituição eram mobilizados para encher a sala onde esta decorresse.
“Boaventura fizera-se à ‘Bella’, mas ela ficou perturbada e não tinha forças para fazer disso assunto público”, conta um amigo da deputada estadual brasileira, que denunciou o alegado assédio do sociólogo nos tempos do CES
Na noite de 23 de janeiro, após um seminário, no qual Boaventura fora anfitrião do amigo José Geraldo de Sousa Júnior, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, “Bella” e Fábio, na companhia de amigos brasileiros e portugueses, rumaram ao restaurante O Casarão, “quartel-general dos colóquios afetivos” do sociólogo com alunos e colaboradores, na expressão do conferencista daquela tarde. No fim do repasto, veio a foto da praxe: Boaventura, de cachecol vermelho ao pescoço, rodeado pelos devotos, posou com Isabella ao lado, que sorria, com a mão esquerda no ombro do “mestre”. Atrás de ambos, o namorado dela.
Por alguns meses, a brasileira ainda manteve, nas redes sociais, a veneração pelo ídolo, ora o assinalando em debates ora elogiando um “maravilhoso artigo”. De repente, o culto extinguiu-se. Quase sem se dar por isso, Boaventura, que “Bella” conhecera em Coimbra no contexto dos intercâmbios científicos entre Brasil e Portugal, “desaparecera” das redes digitais da investigadora brasileira.
A agora deputada estadual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em Minas Gerais, precisou de quase dez anos de dor, anonimato e silêncio para explicar a razão pela qual o seu mundo – na versão dela e negada pelo visado – desmoronou em 2014. “Bella” Gonçalves contou à Agência Pública, do Brasil, que, certo dia, durante uma reunião no apartamento de Boaventura, o sociólogo lhe pousou a mão na perna e sugeriu que ela teria vantagens caso decidisse “aprofundar a relação”. Ainda meio zonza com a proposta de “contrato” de cariz sexual, saiu porta fora. No dia seguinte, Boaventura terá chamado Isabella e o namorado para conversar. “Humilhou nossos trabalhos.” Fábio chorou à frente do diretor do CES e “Bella” entendeu a descompostura como punição pela recusa.
Assédio e abusos na Academia
Ela tinha 26 anos, ele 70.
A brasileira já notara abordagens mais subtis por parte do orientador, mas, a partir daí, nada ficou igual. Na época, o núcleo mais restrito de amigos e de colegas do casal recebeu a notícia de que a brasileira ia embora. Motivo? “O Boaventura fizera-se a ela, mas ela ficou perturbada e não tinha forças para fazer disso assunto público”, recorda à VISÃO um confidente desse tempo. Quem tinha de saber soube, incluindo professores do CES. Para espanto dos mais próximos, Fábio, o namorado, terá sugerido que ela relativizasse o caso.
A relação já não estava bem e terminou logo depois.
Isabella Gonçalves foi a primeira vereadora lésbica a ser eleita em Belo Horizonte. Casou-se em 2018 com a atual companheira e doutorou-se no CES, anos depois, com outro orientador. “Quis a vida que as coisas dessem errado. O errado mais acertado da minha vida”, escreveu, no Facebook. Também doutor pela mesma instituição, o ex-namorado – que não respondeu ao contacto da VISÃO – coordena, no Rio Grande do Sul, a Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), de que o sociólogo português é fundador. Fábio cita-o nas entrevistas e artigos, e se nada, entretanto, se alterar, Boaventura participará num debate em Porto Alegre, dia 28, em representação da UPMS.
A revelação do caso da atual líder do PSOL em Belo Horizonte surgiu na sequência de alegadas práticas de assédio, denunciadas por três ex-alunas do CES (Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya) num capítulo “autoetnográfico” da renomada publicação científica Routledge sobre más condutas sexuais e outros abusos no meio académico. As autoras não citam nomes, mas a narrativa refere pistas, casos e episódios de abusos de poder, “extrativismo intelectual e sexual” e “impunidade”, que Boaventura (“professor-estrela”) e o antropólogo Bruno Sena Martins (ex-namorado de uma das investigadoras e referido como “aprendiz”) assumem como lhes sendo dirigidas, a eles e ao CES. Negam tais práticas, prometem recorrer aos tribunais e suspenderam funções até à conclusão do inquérito de uma comissão independente, por decisão da instituição.
Uma das histórias incluídas no artigo é a de “Bella” Gonçalves, embora sob anonimato. A repercussão mundial da polémica gerou novas acusações contra Boaventura, uma delas protagonizada pela ativista indígena argentina Moira Millán. Depois, foi a vez de a deputada brasileira desvendar a sua identidade.
“Abalado, constrangido e triste” com o caso, que ignorava, amigo de Boaventura e coautor de artigos científicos em parceria, José Geraldo Júnior conheceu “Bella” Gonçalves em Coimbra e segue os seus mandatos e ação política. “Dou inteiro crédito a tudo que ela diz, assim como acho que a atitude mais compatível com a ética emancipatória é ter como procedentes todos esses depoimentos, trabalhar pela responsabilização de toda e qualquer violação e construir mecanismos que coíbam sua repetição”, esclarece o ex-reitor da Universidade de Brasília, antecipando à VISÃO o teor de um artigo que publicará na sua coluna “O Direito Achado na Rua”, no jornal Brasil Popular. Para ele, Isabella Gonçalves deu “a mais viva expressão de seu engajamento democrático: transformar a dor numa ação para a blindagem de toda uma nova geração de mulheres, para que nenhuma violação siga impune, para que nenhuma mulher fique sem o atendimento adequado. Esse deve ser o compromisso de todos nós”, defende.
Academia, versão “Rei Leão”
As histórias sórdidas da Academia são tão velhas como a própria, sobretudo quando consumadas. A elas não falta, claro, a inevitável galeria de notáveis e de personalidades públicas sempre protegidos pelos cenáculos, o espírito de alcateia, os “consensos” ou as dependências, medos, sobrevivências e precariedades de quem poderia denunciá-los.
“O perfil de heterossexual, nascido entre 1940 e 1960, que assedia alunas e investigadoras ao longo de anos é muito comum. Mas até há pouco tempo era tudo mais ou menos consensual, sem que elas se descrevessem como vítimas de assédio, mesmo quando não beneficiaram dessas relações”, descreve um deputado e comentador televisivo ligado à Universidade de Lisboa (UL).
A declaração pede rigor científico, pelo menos a montante. Ei-lo: “A história mostra-nos como, longe de ser neutral, o domínio administrativo e epistémico da Academia tem sido detido por – e garantido para – sujeitos categorizados como homens, de classe média-alta, brancos, fisicamente capazes e heterossexuais, seja ao nível das expectativas, acesso e sucesso ao longo do percurso académico, seja ao nível da construção da carreira na pesquisa, produção de saberes, liderança e reconhecimento social”, lê-se no artigo Desigualdades de Género no Ensino Superior Português: Desconstruindo os tijolos patriarcais da velha torre de marfim, da autoria de Nuno Santos e de Liliana Rodrigues, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Catedráticos de História Medieval, monárquicos, por vezes ligados à Opus Dei, casadíssimos e com descendência numerosa, despedem secretárias quando estas engravidam ou protegem favoritas, desde as cadeiras de mestrado às vagas para assistente, em alguns casos até chegarem a diretoras de faculdade.
Dinastias também as há: catedráticos de Medicina que aplainam o terreno para os filhos dirigirem as instituições onde fizeram o seu percurso, por exemplo. E não faltam misoginias célebres: além das relações com várias subordinadas, um professor e investigador do Instituto de Ciências Sociais da UL ficou famoso pela forma como destratava o sexo feminino para gáudio dos ouvintes. Outro, da mesma instituição, contratava prediletas, mesmo quando destratado em público pela performance sexual.
Professores oriundos da Universidade Autónoma de Lisboa, com ambições políticas, não se livraram da suspeita de assinarem livros académicos para os quais pouco ou nada contribuíram e muito menos se coibiram de pagar a renda do apartamento a ex-alunas vertidas em vedetas de televisão. Na Universidade Nova de Lisboa, também circularam, entre antigos estudantes, vídeos das atividades extracurriculares de um catedrático com alunas e investigadoras, sem que as puras almas académicas se sobressaltassem. Plagiadores reincidentes, “nódoas das Relações Internacionais”, só foram expulsos da Academia ao fim de uma dúzia de casos detetados e depois de fazerem parte da comissão editorial de uma revista académica, por receio dos departamentos das próprias instituições, que, em alguns casos, até perseguiram quem alertara atempadamente para as situações.
A mancha do professor
Acusações de assédio põem em xeque carreira de prestígio de Boaventura Sousa Santos, o sociólogo que aprendeu com o mundo que palmilhou
Aos 22 anos, Boaventura Sousa Santos ainda não conhecia o mundo para lá dos livros. Nascido e criado em Coimbra, filho de uma família humilde, o então recém-licenciado em Direito, pela Universidade de Coimbra (UC), com média de 17 valores – a melhor em 1963 –, aproveitou uma bolsa académica para rumar a Berlim Ocidental (cidade dividida pelo Muro), resolvido a prosseguir os estudos em Filosofia. “Lembro que eu nunca tinha saído de Portugal, tinha apenas feito uma visita de estudo, no final do Ensino Secundário, ao Algarve (…). Foi o primeiro grande trauma da minha mãe, o seu filho único, muito mimado (…)”, recorda, numa entrevista à Revista Crítica de Ciências Sociais, em 2018, por altura dos 40 anos do Centro de Estudos Sociais (CES), conduzida pelo “aprendiz” Bruno Sena Martins. Para trás deixava o convite para lecionar na faculdade, onde observara, com notório desagrado, como os agora colegas “ganhavam muito (…) nos célebres pareceres”, elaborados para “pessoas importantes, que podiam pagar bons advogados”. “Às vezes, até ficava escandalizado como era possível ganhar tanto dinheiro em tão pouco tempo”, confessa na mesma conversa. Ligado ao Movimento Católico de Estudantes – desgostoso com o salazarismo –, apenas os diálogos com professores como Miguel Baptista Pereira ou Vítor Matos (que lembra como “mestres”) ainda o seguravam na cidade. Mas seria numa Alemanha partida em blocos que viria a despertar para a política, posicionando-se no campo do marxismo ocidental, ou socialismo democrático, opondo-se, simultaneamente, ao capitalismo norte-americano e à ditadura soviética. Leitor ávido de Marx, Trotsky, Ivan Illich e Ernst Bloch – autor de O Princípio Esperança, que descreve como “uma bíblia” –, o académico desenvolveu e consolidou o seu conceito de “justiça social”, após doutorar-se em Sociologia do Direito, na conceituada Universidade de Yale, nos Estados Unidos da América, em 1973, ano em que ajudou a fundar a Faculdade de Economia da UC, onde criaria o curso de Sociologia. Com trabalho de campo em vários países do mundo (com presença ilustre no Brasil), tornar-se-ia autor reconhecido e premiado, com textos traduzidos numa dezena de línguas. Antes das acusações de assédio de que é alvo, Boaventura Sousa Santos só havia levantado o véu da intimidade através da poesia, paixão que sempre alimentou. Do último verso de Nature Boy [“The greatest thing you’ll ever learn/ Is just to love and be loved in return”], imortalizado pela voz de Nat King Cole, diria ser “o poema de amor mais bem-feito” que alguma vez ouvira, e inspirador. Hoje, porém, aos olhos do público, parece mais longe de lograr esse propósito.
No Departamento de História de uma faculdade no Norte do País, ouviam-se há uns anos, nas reuniões informais, sugestões para barrar a entrada de alunos com deficiências. Os preconceitos de género e raciais, dirigidos a mulheres e a estudantes brasileiros ou das ex-colónias, eram frequentes mas também contestados. E há ainda o caso de um ex-governante, do Conselho Científico de uma instituição a sul, que apressou o despedimento da professora convidada que, entretanto, engravidara. “Eu já não sei comprar roupa interior”, justificara, por seu lado, um historiador e deputado socialista por três legislaturas, quando tentou encaminhar uma subalterna para a sua casa, sem sucesso.
O #MeToo do Minho
Em 1997, quando Regina Leite começou a estudar o assédio sexual na Academia, a ideia da atual docente na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho (UM) e investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da instituição gerou desconfiança e perplexidade. “Não é um tema sério”, ouviu. Quando muito, seria “assunto da periferia, arredado do mainstream da investigação”. Talvez até “veleidade ou bizantinice” da então jovem colega e investigadora, “uma americanice” sem aplicação à nossa realidade. Temeu-se, porém, que procurasse “esqueletos no armário” ou que desencadeasse uma “caça às bruxas”. Geraram-se boatos, conversas de corredor, discussões em surdina. “Artigos internacionais eram deixados, em segredo, no meu cacifo”, lembrou, numa conferência recente sobre o tema.
Quase três décadas depois, o que mudou? “A universidade, enquanto espaço público, continua a ser um lugar de violência e de opressão para a voz e o corpo feminino”, assume. Ignorado durante anos, “porque se supunha que não existisse nas universidades”, o problema não desapareceu por milagre. “A caixa de Pandora tardou em ser aberta, mas ainda é um tema à margem das preocupações da ‘torre de marfim’, profundamente machista”, refere.
Em 2021, Celeste Amorim, então estudante do Instituto de Ciências Sociais da UM, verteu para a dissertação de mestrado o resultado de um inquérito a 35 estudantes finalistas de cursos de 1º e 2º ciclos, a maioria do sexo feminino, com média de 23 anos. Foram relatadas situações sistemáticas de assédio, dentro e fora do campus. Porém, o lado mais sombrio da Academia estava por destapar: “Identificaram-me três professores catedráticos com comportamentos de assédio sexual. Dois de Ciências Sociais e um de Gestão. Ao que sei, continuam por lá”, revelou à VISÃO a autora do estudo, numa esplanada do Porto, onde agora trabalha.
As denúncias referiam também funcionários da UM e incluíam relatos expressivos. “Tenho um professor (…) bastante conhecido por gostar de tocar em meninas, por subir notas a meninas que vão de decote, fazer comentários sobre a beleza eterna das mulheres (…). Já fomos avisadas por alunas do 3º ano. É uma situação que decorre há, pelo menos, uma década”, narrou uma inquirida. “Ah!, se tu gritas assim com uma palmada no braço, queria ver, se alguma coisa te entrasse por aí adentro, como é que tu ias gritar…”, ouvira outra. “Comentários sexistas e machistas, toques indesejados nas mãos, cara ou cabelo e atenção sexual indesejada são alguns comportamentos de assédio cometidos pelos professores”, refere Celeste Amorim. “Mais do que os rapazes, elas identificam as relações de poder e a desigualdade de género na universidade. Sentem-se inferiores, acham que os professores dão mais atenção aos rapazes, mesmo quando elas querem participar. No caso dos assédios, sentem-se impotentes e desamparadas, porque não acreditam na penalização dos agressores.”
No interior das instalações da UM ou fora delas, em ambientes académicos mais protegidos ou festivos, jovens inquiridas descreveram ainda as “armas” de prevenção que transportavam, todos os dias, como se fossem para a guerra: chaves dissimuladas entre os dedos, gás-pimenta, desodorizante, navalhas e outros objetos pontiagudos, e até um bastão de metal.
Em novembro de 2021, a UM afastou um trabalhador, após denúncia de assédio sexual. Vieram a público outros casos. A reitoria reforçou a segurança, reportou às autoridades, mas, a 2 de dezembro, centenas de alunos manifestaram-se em Braga, na universidade, contra o assédio sexual. Uma página criada no Instagram reuniu, de forma anónima, quase centena e meia de relatos, uma parte envolvendo professores e até uma professora. Durante uma aula online na plataforma Zoom, através de um chat privado, uma docente do curso de Línguas e Literaturas Europeias terá enviado a um aluno fotos pornográficas. “Disse-me que se sentia sozinha e perguntou-me se gostava de pito”, descreveu o visado, que, por vergonha, não se queixou aos órgãos da UM.
As situações problemáticas vinham de trás.
A 5 de junho de 2020, um grupo de 17 alunas reportou à Comissão de Ética da UM o aparecimento de uma página aberta, na internet, com o nome completo de todas as estudantes do 3º ano de licenciatura em Ciências da Comunicação, entre outras. O site reproduzia uma espécie de competição para avaliar as jovens com atributos mais atraentes, ao estilo “Liga dos Campeões”, a eliminar, para deleite dos rapazes. Além da eventual violação de dados e de direitos de personalidade, estavam em causa os códigos da própria instituição. As queixosas enfatizaram, por email, “o efeito nefasto e psicologicamente destrutivo” do sucedido, até pelo facto de os autores serem “colegas com quem partilhavam o quotidiano”. Apesar da assunção de culpa por parte de alguns rapazes, o caso foi reportado à Reitoria. “Nunca nos responderam”, recorda uma das denunciantes. E muito estará por fazer. Em fevereiro último, uma ação de sensibilização promovida pelo Instituto de Educação da UM, levada a cabo pela GNR, teve um público quase exclusivamente feminino.
Face a alegadas práticas de assédio moral e sexual, a UM garantiu à VISÃO ter recebido apenas uma queixa formal, em 2021. De momento, a instituição operacionaliza orientações do grupo de missão para a prevenção e combate ao assédio, apresentadas em dezembro daquele ano. Já existem, entretanto, linhas para denúncias anónimas e apoio psicológico especializado para vítimas de violência.
Mais a sul, conhecemos a experiência de Carla (nome fictício), que, com apenas 19 anos, em 1998, decidiu frequentar explicações tendo em vista a realização do exame de Matemática I, uma das cadeiras mais temidas entre os caloiros da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Uma amiga sugeriu-lhe o nome de J., docente naquela faculdade. Durante meses, tudo correu normalmente. Uma vez por semana, ao final da tarde, a jovem ia ao apartamento do “professor J.”, homem nascido na década de 1960, onde, a cada sessão, procurava domar números e equações. “Até àquele momento, nada de esquisito se passara”, refere Carla, que, à VISÃO, recorda como “o explicador tinha até já referido estar noivo e tinha intenções de se casar brevemente”.
Na véspera do exame, a aluna chegou ao apartamento do professor, situado num vale florido da cidade, como habitualmente, mas, desta vez, J. convidou a jovem aluna a sentar-se no sofá da sala “para conversarem um bocadinho”. Tema? O exame de Matemática I do dia seguinte. “Foi tudo muito incomodativo. Aproximou-se de mim, começou a agarrar-me, dizendo-me: ‘Sinceramente, acho que não estás preparada [para ser aprovada no exame]… mas, se tivermos algo mais, quem sabe, estou disposto a dar-te as respostas para teres positiva”. Passados 25 anos, Carla não lembra com exatidão as palavras que lhe saíram naquele momento, apenas que pegou na mochila e correu escada abaixo, abandonando o local, a tremer e a chorar, sem nunca olhar para trás. Só quando chegou a casa é que conseguiu rebobinar o sucedido. “Contei a amigos, apenas. Nunca apresentei queixa, com receio de que não acreditassem em mim, de que fosse prejudicada no curso por outros professores”, alega. “Sentia grande revolta e impotência, claro, mas era a palavra de uma caloira contra a de um docente de uma faculdade, que eu frequentava há poucos meses…”.
O episódio durou apenas minutos, mas, durante muitos anos, Carla não se esqueceu da sensação de terror. Aprovada no exame, concluído o curso, permaneceu na cidade, não muito longe do apartamento onde foi atacada. Um dia avistou o professor, ao longe, a brincar num parque infantil na companhia de uma criança.
“Ambiente tóxico” na FDUL
Em novembro de 2021, a intervenção de Catarina Preto, à época recém-eleita presidente da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), no Conselho Pedagógico da instituição, virou a faculdade “de pernas para o ar”: anos de silêncio, assédios e medo terminariam naquele mandato, prometeu. Criado um canal próprio (uma minuta) para receber denúncias, as queixas chegaram, visando assistentes e professores da “casa”. Ano e meio depois, o ambiente na FDUL continua “tóxico”, com referências a um clima de “guerra surda” ou de “paz podre”. “Tudo ficou na mesma”, dizem.
Várias alunas e alunos apontaram o dedo a práticas de assédio sexual e moral na FDUL. Docentes foram visados, sem consequências. Por proposta do assistente Miguel de Lemos, lançou-se um canal de denúncias da própria faculdade. Em 11 dias entraram 51 queixas de assédio sexual e moral visando dez por cento dos professores. Os números levaram à constituição de um gabinete de apoio à vítima, com o apoio jurídico de Rogério Alves, indicado pela Ordem dos Advogados, a pedido da faculdade. Mas a experiência frustrou-se: o contrato do causídico terminou no fim do ano passado, sem renovação, e o único caso que entrou na Justiça acabou arquivado pela Procuradoria. “Chegaram poucas queixas ao gabinete. Era expectável. Só um maluco confiaria neste mecanismo. Percebo pouco de segurança informática, mas, acredito, será fácil contornar o anonimato de uma queixa”, diz fonte da FDUL. O medo mantém-se.
Estudantes da Universidade do Minho denunciaram, numa dissertação de mestrado, publicada em 2021, o assédio sexual e as atitudes sexistas de três professores catedráticos da instituição
Tudo piorou, quando, explicam à VISÃO, “professores com responsabilidades de gestão ou com uma rede de influências externa e interna, que permite controlar quem a gere, adotaram posição defensiva na tentativa de conter a situação, abafando relatos das vítimas e desacreditando denunciantes”. Foi o caso de Miguel de Lemos, alvo de processo disciplinar após denunciar alegada tentativa de coação a Catarina Preto. O processo, refere o próprio à VISÃO, serviu para “tentar silenciar o único docente que, ao tempo, ousou falar publicamente sobre estes comportamentos. Foi uma mensagem muitíssimo eficaz: criou um clima de medo e suspeição” que, assinala, afetou docentes e alunos. “Daí a FDUL ter tido tão poucos casos de denúncias após o meu processo disciplinar, que durou oito meses, e viria a ser arquivado”.
Miguel de Lemos garante conhecer “casos de assédio moral e sexual por parte de membros do corpo docente da escola, tendo como vítimas alunas e alunos, bem como investigadores e assistentes”. E fala de conivências. “Nunca a FDUL promoveu mecanismos de investigação junto dos alunos e docentes, que expuseram casos de assédio moral e sexual”, nem quando surgiram na Imprensa. Miguel acusa os órgãos de gestão de agir na defesa da “autopreservação e da manutenção do statu quo, num contexto marcado por uma intrincada rede de interesses de alguns dos membros do corpo docente”.
A “dupla bitola”
À VISÃO, alunos da FDUL insistem na veracidade das situações de assédio sexual e moral. Referem, por exemplo, o caso de explicações privadas noturnas a um estudante, ocorridas numa sala da faculdade, e o caso do docente que, nas aulas ao 1º ano, chama “burros” aos alunos e diz: o curso “não é para gente pobre”.
O medo de represálias impede as queixas, asseguram as fontes da VISÃO. Se não surpreende, talvez os nomes envolvidos servissem de alerta. “Muitos docentes têm dupla bitola. Escrevem em jornais, têm intervenções magníficas, de abertura extrema, mas cá dentro comportam-se exatamente como os outros: de forma machista, misógina, autoritária e amputando a expectativa e a esperança dos mais jovens.”
Raio-x à UL: maioria sofre assédio laboral
Inquérito à revelia da reitoria da universidade gera polémica
No dia 7 de março, o reitor da Universidade de Lisboa tentou travar, através de uma mensagem de correio eletrónico enviada ao conselho de coordenação universitário, um inquérito desencadeado por professores e investigadores da “casa” destinado a apurar os níveis de assédio laboral e moral nas instituições da UL. “O dito inquérito não foi sujeito a validação por qualquer Comissão de Ética, não menciona os promotores, não refere o fim a que se destina nem a política de dados em que se baseia, encontrando-se em violação clara das normas das escolas para este tipo de estudos”, escreve o reitor Luís Ferreira no email, a cujo teor a VISÃO teve acesso. Movido pelos crescentes relatos e denúncias sobre o tema que têm sido difundidos nos corredores das faculdades e noutras instituições da UL, o grupo que decidiu levar a cabo o estudo sobre assédio laboral e moral a docentes e investigadores da universidade solicitou respostas por correio eletrónico até 20 de março e garantiu a validade científica do questionário, sustentado, alega, na escala de mobbing [trad.: assédio moral] de Leymann (LIPT-60), que calcula o índice global de mobbing, adaptado para o contexto português.
A iniciativa do reitor terá, no entanto, dissuadido potenciais respostas quando as mesmas decorriam a bom ritmo, mas os promotores da auscultação garantem que a mesma será divulgada publicamente em breve. Ao que apurou a VISÃO, os resultados preliminares apontam para 55 por cento de casos de assédio, num universo próximo de 200 inquéritos validados.
A preocupação em relação ao modo como está a ser feito este estudo, levou Luís Ferreira a levantar a suspeita de uma eventual violação de dados, pois, sustenta, “não é conhecida a forma como foram obtidos os endereços de email dos professores e investigadores”. O reitor aproveitou ainda a mensagem enviada para desincentivar respostas ao inquérito.
As palavras de Elvira Fortunato, há dias, também levantaram a fervura. A ministra do Ensino Superior descartou a criação, para já, de uma estrutura nacional para resolver casos de assédios: “Há várias entidades dentro das instituições que podem ajudar e receber todas essas denúncias”, afastando assim o cenário de medo e de represálias. Comentários “absolutamente lamentáveis e demonstrativos do desconhecimento do funcionamento das instituições”, refere Miguel de Lemos. Sem prejuízo da presunção de inocência, “também é importante ter a noção de que, ao fazer tal ‘profissão de fé’, põe em causa a palavra de dezenas de profissionais do Ensino Superior e as narrativas circunstanciadas de centenas de alunos, investigadores e assistentes universitários – as vítimas”, assinala.
A advogada e professora Inês Ferreira Leite, voz ativa na denúncia de práticas de assédio moral e sexual na Academia, e com uma experiência de 20 anos na FDUL, destaca que “o assédio moral é o prevalecente” na instituição. “Permite que, por vezes, também surjam situações de assédio sexual.” O presente, aliás, não será muito diferente do passado. “Não houve mudança de perceção em relação a estas coisas, nos últimos 50 anos. Se questionar ex-alunos ou antigos docentes da FDUL sobre professores com poder e influência na instituição, vão dizer-lhe que a faculdade vive em meados do século XX, não evoluiu, não conheceu mudança de mentalidades”, refere. “Os professores fascistas, que tinham colaborado com o Estado Novo e a PIDE, regressaram todos, pouco depois do 25 de Abril, até mesmo aqueles que não tinham mérito. Ainda hoje, pensam e educam da mesma forma, para que os alunos e assistentes pensem como eles”, relata.
A antropóloga Elsa Peralta sofreu assédios e reclama uma comissão independente, como a da pedofilia na Igreja, para limpar a Academia: “Caso contrário, é a mesma coisa do que pôr os padres a investigar o que lá se passa”
No início do mês passado, um grupo de professores decidiu levar a cabo um estudo sobre assédio laboral e moral a docentes e investigadores da Universidade de Lisboa, solicitando respostas por correio eletrónico, até 20 de março. Os autores garantem a validade científica do questionário, mas o reitor da UL, Luís Ferreira, discorda. Logo no dia 7, Ferreira fez chegar um email ao Conselho de Coordenação universitário [cujo teor reproduzimos em caixa nestas páginas], pondo em causa a validade científica e a legalidade da iniciativa. A mensagem travou o ritmo das respostas, mas fonte próxima dos promotores da iniciativa garante: o relatório será divulgado em breve e incluirá perto de 200 questionários validados e níveis de assédio laboral e moral da ordem dos 55%.
Enquanto isso, a Universidade do Porto validou, no seu portal de denúncias, desde junho passado, 19 queixas e reclamações da comunidade académica, cinco das quais relativas a assédio moral e sexual. “As universidades devem investigar até ao fim todos os casos apresentados, doa a quem doer, e tirar consequências do que for apurado”, defendeu, há dias, o Conselho de Reitores.
Os relatos escutados são transversais a várias instituições. E de norte a sul ouvem-se casos relativos a outros pecados da Academia: endogamia e compadrios. A VISÃO acedeu a pormenores de um concurso na Universidade da Beira Interior, alvo de impugnação judicial, em que os vencedores terão sido orientados por um docente, que integrava o júri do concurso. Embora a prova documental e testemunhal pusesse em dúvida partes dos currículos dos candidatos, a ordenação final manteve-se. Pormenor ou talvez não: os certificados adicionais dos vencedores terão sido emitidos e assinados por dois elementos do júri, um deles o tal orientador de doutoramento dos candidatos.
São outros, porém, os casos a ter alcance mediático.
“As situações de assédio, que têm vindo a ser denunciadas, são particularmente graves porque implicam e reproduzem a já assimétrica relação de poder entre homens e mulheres. Mas desengane-se quem pensar que este é apenas um assunto de género. Algumas das mais bárbaras situações de assédio laboral a que assisti, ou vivi na pele, nas várias instituições por que passei, foram perpetradas por mulheres”, escreveu Elsa Peralta no Facebook.
A antropóloga e investigadora do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da UL reclama “uma reflexão e uma ação mais vasta sobre os modos de governo das instituições da Ciência e do Ensino Superior”, sobre as endogamias que gera e as formas de precarização laboral que as sustentam. De outro modo, crê, “tudo isto não passará da novela mediática do momento, ou, pior, do pretexto, para que algozes cavalguem sobre a miséria alheia”. À VISÃO, Elsa Peralta sugere a criação de uma comissão independente para iluminar as trevas da Academia, idêntica à que tratou dos casos de pedofilia na Igreja Católica. “Caso contrário, é a mesma coisa do que pôr os padres a investigar o que lá se passa.”
Artigo publicado originalmente na VISÃO em abril de 2023.