Com o aproximar do cinquentenário da Revolução dos Cravos, o rumor cresceu em círculos restritos: não havia rasto, no arquivo da RTP, do histórico Festival da Canção de 1975, o primeiro realizado em liberdade, menos de um ano após o golpe militar de 25 de Abril, que derrubou a ditadura do Estado Novo. Agora, interpelado pela VISÃO, o conselho de administração da TV pública confirmou-o, num e-mail com uma só frase telegráfica, na qual “informa que relativamente à edição do Festival da Canção de 1975 nunca deu entrada nenhuma gravação no arquivo da RTP”. Não houve explicações adicionais, embora tivessem sido pedidas.
Ou seja: daquela edição do festival, espelho do PREC (Processo Revolucionário em Curso), e com características únicas, apenas restam, como documentos audiovisuais, o filme promocional da canção vencedora – Madrugada, com música e letra de José Luís Tinoco, interpretada por Duarte Mendes, ele próprio capitão de Abril (comandou uma coluna que saiu da Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas) – e o vídeo da sua apresentação em palco na final da Eurovisão, que naquele ano teve lugar em Estocolmo. Para o musicólogo Rui Vieira Nery, estamos perante “um grave caso de incúria e de irresponsabilidade relativamente a um documento importante para a história da cultura popular portuguesa”, diz. “É um grave incumprimento do dever de serviço público da RTP”, acrescenta o também professor universitário e compositor, que reforça: “Tenho até dificuldade em conceber um grau de irresponsabilidade e de incompetência semelhante.”
Mas, afinal, o que poderá explicar o desaparecimento audiovisual do festival de 1975, quando, por exemplo, o do ano anterior está disponível na íntegra no arquivo da RTP, o qual foi ganho pela canção E Depois do Adeus, interpretada por Paulo de Carvalho (a música é de José Calvário e a letra de José Niza), tema que seria uma das senhas para a saída dos quartéis das tropas do Movimento das Forças Armadas no 25 de Abril? Uma fonte, que preferiu não ser identificada, conhecedora dos procedimentos à época na RTP, recorda que a frequente falta de bobines tornava comum a sua reutilização. “As fitas não eram preservadas e gravavam-se outros programas por cima”, diz. Esta fonte acredita ter sido esse o destino da gravação do festival de 1975 – e, por tabela, a razão do seu apagão.
Tenho até dificuldade em conceber um grau de irresponsabilidade e de incompetência semelhante
rui vieira nery, musicólogo
A mesma convicção tem José Nuno Martins, que apresentou, com Maria Elisa Domingues, a histórica edição do festival, a 12.ª, e que, por isso, considera “insuficiente e espúria” a informação transmitida pela RTP à VISÃO. “As decisões de gravar por cima, de deitar fora gravações existentes para pôr lá outras, nas mesmas bobines, não foram tomadas por profissionais da RTP”, salvaguarda. “Foram tomadas por gestores que passavam transitoriamente pela estação, como diretores de programas, e que determinavam os destinos quotidianos do efémero. Eram ilustríssimos escritores, intelectuais, chamados pela classe militar ou política para gerir estas questões. E, coitados, viam-se confrontados com a inevitabilidade de precisar de recursos para poder gravar novos programas”, enquadra José Nuno Martins. “Portanto, ia-se às bobines mais antigas e aqui vai disto – gravava-se por cima.”
Com a resposta que deu, “a RTP parece querer sacudir a água do capote”, diz o conhecido apresentador e produtor de TV, e radialista. “Ao menos, que explicasse uma razão lógica, que é a que elenquei”, sublinha.
“Arrebatar o poder à burguesia”
A informação transmitida pela RTP à VISÃO é “insuficiente e espúria”, diz José Nuno Martins, que apresentou, com Maria Elisa Domingues, o festival de 1975
A partir daqui seguimos um artigo da mais recente edição da revista VISÃO História – toda ela dedicada à canção de protesto -, que retrata o festival de 1975, após recolha de testemunhos de protagonistas, consultas a teses académicas e à imprensa da época, e audição de uma reportagem da RDP (atual Antena 1) sobre o certame. Ficamos ali a saber que a direção da RTP, pretendendo romper com o modelo do “nacional-cançonetismo”, acarinhado pelo Estado Novo, convidou 14 compositores a apresentarem os seus temas. Um grupo de dez – José Mário Branco, Pedro Osório, José Luís Tinoco, Paco Bandeira, José Niza, Sérgio Godinho, Pedro Jordão, Rita Olivaes, Fernando Guerra e Nuno Nazareth Fernandes – aceitou o desafio, ficando por conta de cada um a escolha dos letristas e intérpretes. José Afonso e Adriano Correia de Oliveira não compareceram por estarem em Angola, enquanto Fernando Tordo e José Calvário alegaram não terem nada em preparação.
Como não podia deixar de ser, em pleno PREC, a quase totalidade dos dez temas apresentados tinha um vincado conteúdo político, mas houve mais novidades. Os vídeos das canções e interpretações, previamente gravados, foram exibidos pela RTP num fim de semana de meados de fevereiro. A emissão, sóbria e despojada, transmitida em direto mas sem a presença de público, fez-se a partir do Teatro Maria Matos, em Lisboa. Tudo aconteceu “em mangas de camisa, por oposição aos tradicionais smokings”, recorda José Luís Tinoco, lembrando o ar pomposo das edições anteriores, coladas ao antigo regime. Também não houve um júri nos moldes habituais. Os autores das canções é que votaram uns nos outros, atribuindo de um a cinco pontos. E, claro, as divergências políticas vieram ao de cima.
Num artigo, Marcos Cardão, investigador de História Moderna e Contemporânea, escreveu que quase todos os temas dessa 12.ª edição do festival tinham “uma componente política, versando temáticas relacionadas com o processo revolucionário, a liberdade, a exploração, o capitalismo ou o poder popular”. Mas a letra de Alerta, canção do Grupo de Ação Cultural-Vozes na Luta (GAC) e de José Mário Branco, apoiantes assumidos da UDP (União Democrática Popular), partido de extrema-esquerda, foi a mais marcadamente ideológica: “Às armas!, às armas!/ Alerta!/ Pelo pão que nos rouba a burguesia/ Que nos explora nos campos e nas fábricas/ Operários, camponeses hão de um dia/ Arrebatar o poder à burguesia.” E finalizava com os versos: “Não há reforma burguesa que resista/ Democracia popular!/ E ditadura proletária!/ Pois claro!”

Embora tenha sido um momento único na história dos Festivais da Canção, o tema do GAC ficou em 5.º lugar, com 42 pontos. Para José Luís Tinoco, era “uma caricatura, excessiva, ridícula”. Nuno Nazareth Fernandes, autor da música de Viagem (com letra de Gisela Branco e interpretação de Jorge Palma, que ficaria na 8.ª posição, com 31 pontos), foi da mesma opinião e atribuiu uns escassos dois pontos a Alerta. Numa declaração de voto, considerou “pouco prudente” a hipótese de levar à Eurovisão um tema de “um conteúdo textual muito importante para divulgar em Portugal, mas perigoso para apresentar à Europa, num momento em que ainda há no País muita gente preocupada em não consolidar um regime verdadeiramente democrático”. Hoje, o compositor é mais claro: “Não tínhamos feito a revolução para apanharmos com outra ditadura.”
“Bicho raro”
Em linha com a sua atitude contestatária, o GAC atribuiu apenas um ponto a cada uma das canções concorrentes (já que zero não era possível), por considerar que “todas elas saíram da mesma panela com que a burguesia cozinha os seus grandes lucros comerciais”. Numa declaração de voto, o grupo afirmou que, se tivesse vencido, não estaria disponível para participar na Eurovisão, com o argumento de que “o Alerta para isso não serve”. Fundador do GAC, José Mário Branco nem sequer poupou o seu companheiro de exílio em Paris Sérgio Godinho, autor de A Boca do Lobo, canção interpretada por Carlos Cavalheiro e que ficou em 2.º lugar, com 59 pontos. O pódio seria completado pelo tema Com uma Arma, com uma Flor, da autoria de José Niza e interpretado por Paulo de Carvalho, que arrecadou 53 pontos.
Embora não fosse a favorita, a canção vencedora, como já se disse, foi Madrugada, com orquestração de Pedro Osório, que recebeu 61 pontos. Evocando a mudança de regime político, a letra aludia ao percurso dos que lutaram pela democracia na madrugada de 25 de Abril: “Dos que morreram sem saber porquê/ Dos que teimaram em silêncio e frio/ Da força nascida no medo/ E a raiva à solta manhã cedo/ Fazem-se as margens do meu rio.” O autor do tema, José Luís Tinoco, e o seu intérprete, Duarte Mendes, dizem que se esperava que “ganhasse uma canção mais política”, e o compositor recorda as reações “displicentes” com que Madrugada foi recebida pela rádio e pelos jornais.
Em Estocolmo, na final da Eurovisão, o capitão-cantor confessa ter-se sentido “um bicho raro”. A imprensa estrangeira sabia do seu envolvimento no 25 de Abril e estava sedenta de pormenores sobre os tempos revolucionários que agitavam Portugal. “A minha conferência de imprensa durou uns 45 minutos”, lembra Duarte Mendes. “Até me perguntaram se tinha recebido guia de marcha para estar ali, já que era militar.” Madrugada ficaria em 16.º lugar (em 19 concorrentes), com apenas 16 pontos. Mas Duarte Mendes e Pedro Osório subiram ao palco de cravo vermelho na lapela.
Por ter sido a única que não foi gravada em disco, e face ao apagão do festival de 1975, uma das canções concorrentes deixou mesmo de existir para o acesso público. Com música e letra de Pedro Jordão, e interpretação de Fernando Gaspar, o tema extinto ficou em 10.º e último lugar. Tinha o sugestivo título de Leilão da Lata.