Cerca de 80 por cento dos estimados 600 milhões de gatos domésticos no mundo estão sem abrigo, a viver em condições miseráveis e a infligir altos níveis de predação à vida selvagem – só nos Estados Unidos, matam quatro mil milhões de pássaros e 22 mil milhões de pequenos mamíferos todos os anos. Embora houvesse já a solução mais extrema da esterilização ou castração cirúrgica, existia a necessidade de encontrar alternativas de contraceção permanente que fossem eficientes, seguras e económicas – os contracetivos existentes apresentam efeitos secundários relevantes, que interferem com o equilíbrio hormonal do animal. Durante 20 anos, foram feitas várias tentativas ineficazes. Agora, num artigo na Nature Communications, investigadores relatam o desenvolvimento de uma terapia genética que parece prevenir a conceção em gatas, sem efeitos colaterais aparentes. Uma única toma mantém as felinas livres de crias por quase dois anos e, possivelmente, por muito mais tempo.
Em 2009, uma organização sem fins lucrativos, a Michelson Found Animals Foundation, motivada pela sobrelotação de abrigos e preocupações com o bem-estar animal, anunciou 50 milhões de dólares em financiamento e um prémio de 25 milhões de dólares para acelerar os esforços para encontrar alternativas não cirúrgicas de contraceção animal. Desde então, o programa concedeu 41 bolsas, apoiando todo o tipo de intervenções, mas com resultados escassos.
David Pépin, biólogo reprodutivo do Massachusetts General Hospital, passou o início da sua carreira a pesquisar a Hormona Anti-Mulleriana (AMH), produzida por folículos no ovário que dão origem aos óvulos. Quando, numa experiência, ampliou a expressão da hormona em ratos domésticos fêmeas, seus ovários pararam de formar folículos, esterilizando os animais. A hormona “era muito mais potente do que pensávamos”, descreveu Pepin, à National Geographic. “Com ela, poderíamos basicamente assumir o controle do ovário e controlar a taxa de desenvolvimento dos folículos.” No entanto, no que diz respeito à contraceção humana feminina, não encontrou recetividade para mais inovação. Ao ter conhecimento das bolsas atribuídas pela Michelson, pensou: “Tenho aquilo que procuram”. A avaliar a sua proposta esteve William Swanson, um biólogo conservacionista que trabalhava no Jardim Zoológico de Cincinnati, especialista na reprodução de gatos. “Pareceu-me muito prometedora”, contou, à revista Science, tendo ambos decido unir forças e avançar com a investigação.
A equipa inseriu a versão felina da AMH num vírus inofensivo amplamente usado em terapia genética para transportar genes de substituição para as células. O vírus foi injetado no músculo da coxa de seis jovens gatas domésticas que viviam numa colónia do Zoológico de Cincinnati. Para surpresa dos investigadores, os folículos continuaram a ser ativados, mas estavam atrofiados e não desenvolveram normalmente, embora tenham segregado estrogénio (hormonas sexuais importantes para a saúde óssea e cardiovascular). As gatas tratadas não ovularam e, quando foram colocadas numa sala com um macho, várias horas por dia durante um período de 4 meses – uma experiência repetida 8 meses e 20 meses após a terapia genética – nenhuma engravidou. Quatro das fêmeas recusaram-se a acasalar; as outras duas acasalaram, mas não conseguiram conceber.
“Esta pesquisa é um grande salto – estamos muito entusiasmados”, afirmou, à revista Science, Joyce Briggs, presidente da Alliance for Contraception in Cats & Dogs, uma organização sem fins lucrativos defensora de um contracetivo não cirúrgico. Briggs diz que se a abordagem poder ser ampliada – e funcionar em cães também – pode causar um “impacto enorme” na crise de sobrepopulação destes animais domésticos em todo o mundo.
Ainda não se sabe ao certo quanto tempo permanecerão os efeitos desta terapia genética, sendo possível que desapareçam com a regeneração das células. David Pépin aponta que os níveis de AMH diminuíram ao longo do estudo, mas permaneceram elevados em todos as gatas tratadas, incluindo uma acompanhada por cinco anos. Os investigadores suspeitam que a hormona impede que os folículos ovarianos das gatas se desenvolvam normalmente, mas admitem ainda não saber exatamente como funciona este mecanismo. Será necessário, então, continuar com estes estudos preliminares e com a monitorização das felinas. E a Michelson Found Animals Foundation, que planeia ajudar a comercializar qualquer produto viável, irá reunir-se com a Food and Drug Administration dos Estados Unidos, no próximo mês, para mapear estudos maiores de segurança e eficácia. Segundo Swanson, provavelmente, serão necessários cinco anos até ser lançado um produto comercial no mercado. O futuro passa por reduzir o custo da terapia genética e encontrar maneiras eficientes de administrá-la. Embora o prémio de 25 milhões de dólares da Michelson fosse bem-vindo, a principal motivação, diz o biólogo, é manter os animais fora das ruas.