Casa cheia no Campus da Justiça. A sala de tribunal onde decorreu a primeira sessão do julgamento que coloca Mamadou Ba no banco dos réus, acusado de difamação – por queixa do neonazi Mário Machado –, foi pequena para receber todos os que quiseram prestar o seu apoio ao ativista antirracista. Pessoas sentadas no chão, ainda mais em pé. Outras a espreitar desde o corredor, procurando escutar as palavras iniciais do acusado.
Na origem do processo está um texto publicado, no Facebook, por Mamadou Ba, no dia 14 de junho de 2020, em que este voltou a considerar Mário Machado “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro” – assassinado, na Rua Garret, em Lisboa, no dia 10 de junho de 1995, por militantes da extrema-direita.
À porta do tribunal, Mamadou Ba seria recebido como um herói, por cerca de quatro dezenas de pessoas. Gritos como “Fascismo, nunca mais!” ou “Racismo, nunca mais!” ecoaram em uníssono.
Minutos antes, o ativista antirracista – que, depois de 25 anos a viver em Portugal, se mudou, em janeiro de 2022, para Vancouver, no Canadá, onde trabalha na Universidade da Colúmbia Britânica – tinha reafirmado, perante a juíza Joana Ferreira Antunes, que “Mário Machado é co-autor dos acontecimentos que resultaram na morte de Alcindo Monteiro”. Aos jornalistas, Mamadou Ba afirmou “não estar arrependido de assumir uma posição política com a qual concordo”, defendendo que “todas as pessoas que estiveram presentes naquela noite [nos acontecimentos de 10 de junho de 1995] são responsáveis pelas atrocidades que aconteceram”.
Defesa “politiza” processo; advogado de Mário Machado contesta
Depois de uma longa exposição introdutória da defesa de Mamadou Ba – em que a advogada Isabel Duarte acusou Mário Machado de “continuar a liderar a extrema-direita em Portugal” e que, por isso, “não tem honra no sentido que o ‘homem bom’ possui” –, Mamadou Ba respondeu às perguntas do Ministério Público (MP) e das partes envolvidas.
Pegando numa foto envelhecida pelo tempo, Mamadou Ba contou ao tribunal a história do seu tio-avô para esclarecer a sua posição: “O meu tio-avô foi assassinado pelos nazis, em 1944. Tenho a certeza que não foi Adolf Hitler quem puxou o gatilho da pistola que o matou, mas sei que foi ele o principal responsável pela sua morte”. “Mário Machado não é um alvo das minhas preocupações, em particular. O que me preocupa é o projeto de sociedade que ele representa. [A publicação] foi uma forma de procurar alertar que existem outros protagonistas importantes que continuam, livremente, a atuar contra a democracia”, referiu.
Já o advogado de Mário Machado contestou estas posições. “Os julgamentos políticos acabaram em 1974. Mário Machado foi condenado por crimes, disso ninguém tem dúvidas. Mas não é o que estamos aqui a tratar. Mário Machado esteve ou não esteve envolvido na morte de Mário Machado? Os tribunais decidiram que não esteve”, afirmou José Manuel Castro.
O causídico voltou a apelar que “esta imputação a Mário Machado tem, de uma vez por todas, de deixar de ser atribuída” ao seu cliente. “É disso que trata este processo”, defendeu.
Ba fala de “estratégia da extrema-direita”; Machado com “esperança” na condenação
Mamadou Ba considera que este processo não passa de uma estratégia da extrema-direita para ocupar o espaço mediático, e passar a sua mensagem. O ativista antirracista recordou, aos jornalistas, que “se não fosse este processo, o sujeito que nos traz aqui hoje [Mário Machado] não ‘existiria’”. E refere que o processo “é uma outra estratégia que a extrema-direita encontrou, para instrumentalizar as instituições, nomeadamente a Justiça”. “É uma forma de combate político”, defendeu.
Mário Machado não falou nesta primeira sessão, mas marcou presença no Campus da Justiça. Do lado de fora da sala de audiências, o militante neonazi – vestindo uma camisola com as quinas nacionais – não arredou pé, olhando de frente para a “multidão” que se deslocou até ao tribunal para apoiar o acusado.
No (inédito) papel de queixoso insiste que a publicação no Facebook de Mamadou Ba contém “uma afirmação altamente difamatória” e afirma “ter esperança de um resultado positivo no final”. A lista de testemunhas de Mamadou Ba – que inclui nomes como os de Ana Gomes, Francisco Louçã, Francisca Van Dunem ou Rui Tavares, entre outros – também foi visada, com o neonazi a referir que “isso não o incomoda, pelo contrário”. “Acredito que os tribunais não se deixam coagir por testemunhas proeminentes, nem por política”, diz.
A próxima sessão está agendada para a próxima sexta-feira, dia 12. É a vez de Mário Machado falar em tribunal.
Um caso com… 27 anos
Recorde-se que na origem do processo está um texto publicado, no Facebook, por Mamadou Ba, no dia 14 de junho de 2020, em que este criticava os acontecimentos ocorridos quatro dias antes (no feriado de dia 10), depois de um grupo de neonazis ter decidido organizar uma ação nacionalista, no largo do Chiado, precisamente ao mesmo tempo em que decorria uma homenagem a Alcindo Monteiro, por ocasião dos 25 anos da sua morte, a somente 200 metros de distância – Alcindo Monteiro, cidadão português, de origem cabo-verdiana, foi assassinado na Rua Garret, em 1995, por militantes da extrema-direita.
A ação nacionalista contou com a presença, entre outros, de João Martins, condenado a 17 anos pelo homicídio de Alcindo. Naquela rede social, Mamadou Ba denunciou a provocação e lamentou o facto de João Martins ter passado, todos estes anos, “pelos pingos da chuva do escrutínio público”, longe dos olhares mediáticos, ao contrário de outro parceiro ideológico, Mário Machado, que o autor do texto descreveu como “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo”. De facto, Mário Machado fazia parte do grupo de extrema-direita que, no dia 10 de junho de 1995, se reuniu ao jantar e, nessa noite, decidiu espalhar o terror pelas ruas de Lisboa, agredindo e matando indivíduos de raça negra. O conhecido neonazi acabaria condenado, sim, mas “apenas” por oito crimes de ofensas corporais com dolo de perigo, pelos quais cumpriria quatro anos e três meses de prisão. O seu nome não seria relacionado com os factos que resultaram na morte de Alcindo.
O Ministério Público (MP) e o tribunal acabaram por considerar que a frase utilizada por Mamadou Ba revela um “forte indício” de o acusado “ter difamado” Mário Machado. “Se acaso o arguido [Mamadou Ba] tiver conhecimento de crimes praticados por Mário Machado, pode denunciá-los num lugar próprio, na polícia ou no MP, mas não pode substituir-se aos tribunais e invocar o direito de liberdade de expressão”, escreveu o juiz Carlos Alexandre, no despacho de pronúncia.