“Dar a própria vida se preciso for”. Com este juramento, sussurrado numa voz trémula de orgulho, Fábio Guerra concluiu, em novembro de 2019, o 15.º curso de formação de agentes, na Escola Prática de Polícia, em Torres Novas. A ocasião era solene: não é todos os dias que se concretiza um sonho de criança. “Nasceu para ser polícia”, diriam todos os que com ele se cruzaram, antes e depois daquele dia. Ninguém poderia imaginar, no entanto, que aquele jovem alegre, natural da Covilhã, muito ligado à família e aos amigos, e agora agente da PSP, seria apenas, pouco mais de dois anos depois, uma linha da lúgubre estatística dos elementos das forças de segurança portuguesas que perderam a vida em serviço.
Com apenas 26 anos, Fábio Guerra – o polícia que, dizia, queria trabalhar numa “esquadra com ação” – morreu num dia de folga, na sequência de uma brutal agressão, à porta de uma discoteca na Avenida 24 de Julho, em Lisboa. Os factos mantêm-se vivos na memória coletiva: no passado dia 19 de março, por volta das seis horas da manhã, no culminar de uma noite (que seria) de diversão, Fábio Guerra aguardava pelo transporte de regresso a casa, na companhia de mais três colegas, quando, atrás de si, se iniciou uma cena de pancadaria entre desconhecidos – um grupo de homens, entre os quais os suspeitos Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko, dois fuzileiros da Marinha, e Clóvis Abreu, um amigo destes (ver caixa), envolvera-se numa luta física com outro indivíduo, de nacionalidade estrangeira.
Perante os acontecimentos, os quatro agentes da PSP no local, mesmo vestidos à civil, não hesitaram por nenhum momento e, procurando cumprir a missão que haviam jurado, intervieram, de imediato, para apaziaguar os ânimos. “Parem, somos da polícia!”, terão gritado. Como resposta, porém, receberiam apenas murros e pontapés, que acabariam por deixar Fábio Guerra prostrado, sem sentidos. Pelo solo, o polícia seria ainda pontapeado na cabeça e nas costas – o que lhe terá sido fatal.
Fábio Guerra ainda seria transportado para o hospital de São José, em estado muito crítico, mas não voltaria a recuperar a consciência. Três dias depois, na manhã de terça-feira, 22, a morte levou-o – faz hoje precisamente uma semana.
Lista longa: morrem, em média, 1,4 polícias por ano
Antes da passada terça-feira, 22, a última morte de um elemento das forças de segurança em serviço, em Portugal, datava de finais de 2020. No dia 13 de Dezembro desse ano, o agente da PSP António Doce, 45 anos, morreu no hospital do Espírito Santo, em Évora, horas depois de ter sido atropelado quando tentava travar uma situação de violência doméstica. Doce dirigira-se a um homem que agredia uma mulher, em plena via pública, junto ao Rossio de São Brás, naquela cidade aletejana, mas acabaria atingido violentamente pela viatura conduzida pelo agressor – um guarda prisional, 52 anos, que, no final do ano passado, seria condenado a 15 anos de prisão por homicídio simples.
Meses antes, os GNR Vânia Martins, 31 anos, e Carlos Pereira, 27, ambos elementos da divisão de trânsito de Santarém, também tinham morrido, depois do carro-patrulha em que se encontravam ter sido brutalmente abalroado por um BMW, ao quilómetro 85 da A1, no sentido norte-sul, entre os nós de Torres Novas e Santarém. Dos cinco feridos resultantes do choque (três pessoas seguiam no BMW), ocorrido na manhã do dia 7 de Julho, apenas os militares perderam a vida: Carlos Pereira morreu logo no dia seguinte; Vânia Martins faleceu seis dias depois, a 13 de Julho.
A lista já vai longa (ver infografia abaixo). Desde 2000, 31 elementos da PSP e da GNR perderam a vida em serviço – à média de 1,4 óbitos por ano. Os números confirmam o perfil das vítimas: homens, agentes ou guardas e jovens, com idades compreendidas entre os 20 e os 29 anos. Os distritos a vermelho estão igualmente identificados: Lisboa, Guarda e Setúbal. Quase dois terços dos polícias que morreram em serviço pertenciam à GNR (20); os restantes à PSP (11). No calendário, dois anos negros: 2004 e 2005, em que morreram oito polícias – quatro da GNR e outros quatro da PSP, respetivamente.
A estes dados, não escapam outras forças de segurança: neste período (2000-2022, até ao momento), PJ (dois), SEF (um) e Polícia Militar (um) registaram, no total, mais quatro vítimas mortais, entre os seus elementos que estavam em serviço.
Mas serão estas mortes sintoma de algo mais? Ou apenas episódios circunstanciais? Miguel Oliveira Rodrigues, 43 anos, chefe no Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, docente e investigador do Instituto de Serviço Social da Universidade Lusófona e autor do livro Os Polícias Não Choram, que contou com o apoio do Sindicato Independente dos Agentes da Polícia (SIAP/PSP) – onde exerce o cargo de Diretor Social –, tem dedicado (grande) parte da sua carreira a “estudar” o quotidiano das forças de segurança portuguesas. E conclui: “As agressões contra os polícias têm, nos últimos anos, aumentado de forma significativa, e isso deve-se, em grande parte, ao sentimento de impunidade de quem comete estes atos”. Existem responsáveis? “Sim, claro. A justiça portuguesa”, aponta.
“Temos assistido, neste período, a uma ausência de punições exemplares para quem agride polícias. Isso acaba por levar à repetição destes episódios e, pior ainda, a um aumento da gravidade de cada um destes casos, podendo, nalguns deles, o desfecho ser a própria morte dos polícias, como aconteceu com o Fábio Guerra”, diz, à VISÃO, Miguel Oliveira Rodrigues.
“Amigo” dos suspeitos fulcral para reconstituir crime
Logo na manhã de sábado, 19, a Polícia Judiciária tomou conta da investigação, começando pela análise às imagens de videovigilância disponíveis no local. Quatro suspeitos foram identificados, mas foi o depoimento prestado em interrogatório por um deles, que permitiu reconstituir todos os acontecimentos daquela madrugada e compreender o papel de cada um dos envolvidos, sabe a VISÃO – após ser ouvido este indivíduo foi libertado.
Os fuzileiros Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko, retidos no comando do Corpo de Fuzileiros, no Alfeite, em Almada – por ordem direta do almirante Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) –, seriam detidos na quarta-feira, 23, um dia depois de Fábio Guerra morrer.
Depois de ouvidos, em primeiro interrogatório, pelo juiz Carlos Alexandre, os dois militares ficaram a aguardar o desenvolvimento do inquérito em prisão preventiva, medida de coação justificada pelo magistrado com o perigo de perturbação do inquérito e da ordem pública e também com o perigo de continuação da atividade criminosa. Permanecem detidos no estabelecimento prisional de Tomar.
Por sua vez, continua a ser desconhecido o paradeiro de Clóvis Abreu. Este terceiro suspeito da morte de Fábio Guerra desapareceu, logo nas horas seguintes ao crime, e é agora procurado pelas autoridades portuguesas, que admitem que este até já possa ter abandonado o País.
Clóvis, 24 anos, tem família em Sevilha e Madrid, o que levou o Ministério Público a emitir um mandado de captura internacional. A Polícia Nacional espanhola também já lançou um alerta.
Polícias “revoltados e esgotados”
Fábio Guerra era associado da Associação Sindical dos Profissionais da Policia (ASPP/PSP), a principal estrutura sindical da PSP, que, nesta última semana, tem vindo a disponibilizar apoio psicológico aos seus familiares, amigos e colegas que o desejem. Contactado pela VISÃO, o presidente da ASPP/PSP, Paulo Santos, volta a recordar que “estes problemas não começaram com o Fábio” e que a própria associação “alertou, em tempo útil, por várias vezes, para esta possibilidade, embora, infelizmente, nada tenha sido feito”.
“Há cerca de dois anos, enviámos [ASPP/PSP] um documento ao Ministério da Administração Interna (MAI), à Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) e à direção nacional da PSP que abordava, precisamente, o tema das agressões aos polícias, com um conjunto de contributos que consideramos importantes para resolver este fenómeno”, garante, mas, “lamentavelmente, nunca chegamos a ser contactados por ninguém de nenhuma destas entidades”.
Recordando que “a agressão e a morte de um agente da autoridade não atenta, somente, contra a PSP ou GNR, mas contra aquilo que é a autoridade do Estado”, Paulo Santos considera que “o estatuto do polícia na sociedade tem vindo a diminuir”. E apresenta razões: “Hoje, existe uma maior mediatização do crime, através, por exemplo, de programas de televisão, que não contribuem para a imagem dos polícias portugueses e das suas intervenções”, esclarece.
Alertando para o que considera ser “uma falência de valores na sociedade portuguesa”, o presidente da ASPP/PSP acredita “ser chegada a hora” da polícia e da tutela “reforçarem a dignidade dos polícias”, considerando que, para isso, tem, sobretudo, de existir “uma valorização das condições de trabalho” das forças de segurança portuguesas – o aumento dos salários e dos subsídios de riscos é apontado como “mais fundamental do que nunca”.
“Os polícias estão revoltados e esgotados. Melhorar as condições remuneratórias das forças de segurança é a única forma de conseguirmos atrair mais elementos para as polícias portuguesas, para que os concursos deixem de ficar com vagas por preencher. Precisavamos urgentemente desse reforço”, sublinha.