Tem uma história cor-de-rosa onde abundam os clichés (relações de consanguinidade, gémeas separadas à nascença, irmãos desavindos, amores entre classes distintas…), atores conhecidos do pequeno ecrã, um genérico berrante com cavalos à solta e uma música do Toy. Parece uma telenovela, mas Pôr do Sol carrega no tempero e faz uma paródia do género, a extrapolar os lugares-comuns da ficção ligeira portuguesa. A cada novo episódio exibido (são apenas 16, transmitidos de segunda a sexta, às 21h), a mais recente aposta da RTP no domínio das séries aumenta o alcance viral, com os memes do argumento escrito por Henrique Dias a circular pelas redes sociais.
Os cenários são expectáveis. Alternam entre a ruralidade da Herdade do Pôr do Sol, em Santarém, onde a influente família dos Bourbon de Linhaça produz cereja e cria cavalos campeões, e dois núcleos citadinos: a moderna revista Blaze, em contraponto com o tradicional bairro lisboeta da Madragoa. Os arcos narrativos são semelhantes aos de uma qualquer telenovela portuguesa, mas desconstruídos por momentos absurdos que fazem avançar a ação. Apresentar uma sátira, sem deslizar para a caricatura, era o objetivo da produção da Coyote Vadio. “Falamos muito sobre o risco de sermos sobranceiros, altivos ou condescendentes”, conta Henrique Dias, a propósito das conversas tidas com Manuel Pureza e Rui Melo, cocriadores da série (o primeiro é igualmente o realizador, o segundo interpreta o irmão pérfido e calculista), ambos com currículo extenso (e precioso) em telenovelas. “Nenhum de nós quis cuspir no prato onde comeu”, afirmou Pureza, em entrevista à Rádio Renascença. Prioritário era também juntar atores que tivessem experiência no género. “Todos gostaram da ideia, alguns tinham dúvidas sobre se o público iria perceber e a maioria estava assustada com o tom… havia uma linha muito ténue entre interpretar com intensidade, para dar o registo cómico, e cair na palhaçada”, recorda o argumentista. Gabriela Barros, Diogo Amaral, Sofia Sá da Bandeira, Marco Delgado, Noémia Costa e Manuel Cavaco foram algumas das muitas caras familiares que se envolveram no projeto. O ambiente “fantástico” nas gravações permitiu alcançar um bom resultado. “Para fazer comédia é decisivo, há algo de intangível que o público percebe”, sublinha Henrique Dias.
Após a gravação de um pequeno excerto, para melhor explanarem o conceito, resolveram apresentá-lo à estação pública, que apoiou imediatamente a produção. “Precisávamos de liberdade no texto e na escolha dos atores e a RTP tem feito uma grande aposta em séries e no humor… é a única que arrisca, porque não tem a necessidade imperiosa das audiências”, acrescenta. A liberdade criativa foi total e os resultados recompensaram a aposta. A 24 de agosto, por exemplo, Pôr do Sol alcançou 5,1% de audiência média, 10,3% de share e 482 mil espectadores, ficando ainda no top dos programas mais vistos na RTP Play. “O nosso foco é o da literacia para os media, ou seja, pensar em conteúdos que possam contribuir para o público. O Pôr do Sol vai divertir durante meia hora, mas depois vai fazer pensar”, defendia José Fragoso, diretor de programas da RTP, durante a apresentação pública da série.
“É um tratado de humor refinado, bom gosto e imaculado profissionalismo”, escreveu Herman José nas redes sociais, elogio que “valeu como um Emmy” a Henrique Dias, cujo primeiro trabalho foi, precisamente, com o humorista. “Esta é uma época fantástica para escrever ficção portuguesa, só é preciso um maior apuro, que se ganha com experiência”, defende o argumentista. Avançar para uma segunda temporada de Pôr do Sol é, agora “uma decisão a ser tomada pela RTP”. À semelhança de uma boa telenovela, certamente não faltarão reviravoltas empolgantes para acompanhar. Com boas gargalhadas.