Só ele sabia a verdade do que estava a sentir no momento em que decidiu enviar mensagens de despedida aos amigos e rumou até à Praia do Abano, no Guincho, no passado sábado, dia 20. O homem que tinha um sorriso estampado no rosto, uma companheira de vida com quem planeava oficializar a relação, cinco filhos e uma carreira invejável. O ator Pedro Lima, que confessara, anos antes, ter atravessado um período de angústia, foi encontrado sem vida na água, com cortes fatais no pescoço, pouco antes de chegar aos 50 anos. A ocorrência gerou ondas de choque e perplexidade, tal como aconteceu com a inesperada morte, no mesmo local, do pianista Bernardo Sassetti, em 2012 (também faria 50 anos a 24 de junho).
O que pode levar um homem a cometer um ato de desespero, quando aparentemente nada o faria crer aos olhos dos outros? Sentimentos de vazio, insuficiência, medo, vulnerabilidade, sofrimento e, talvez, uma vergonha do tamanho do mundo, ao ponto de vivê-la em silêncio? Até que ponto o peso ancestral de uma certa ideia de masculinidade impera ainda, criando um muro de silêncio intransponível em face de situações ameaçadoras, reais ou percebidas como tal, como sucede em casos de depressão que acabam mal? Pense-se ainda nos casos do chefe norte-americano Anthony Bourdain, ou do oscarizado ator australiano Heath Ledger, que aos 28 anos sucumbiu por “intoxicação acidental por fármacos prescritos”, e logo se conclui que não há vidas perfeitas e, menos ainda, isentas de tormentas psicológicas, inerentes à condição humana, independentemente das circunstâncias mais ou menos glamorosas da vida de cada um.
Abrir-se à possibilidade de admitir um problema e procurar ajuda é que parece continuar a ser um tabu, sobretudo para os homens. Não deixa de ser perturbador equacionar, em pleno século XXI, que muitos homens se mantenham reféns do seu sofrimento, custe o que custar, sem terem de passar pela “humilhação” de reconhecer que algo não está bem no seu mundo. Porém, é crucial fazê-lo e trazer alguma luz numa área tão complexa e nebulosa como é a da depressão, nem sempre visível aos olhos, mas que importa notar e descodificar para poder intervir a tempo.
Que o digam o humorista António Raminhos, que admitiu ter procurado ajuda quando sentiu necessidade, apelando a que não se esconda o que vai cá dentro por medo de não ser compreendido. Ou o radialista Nuno Markl, que assumiu publicamente ter procurado ajuda há cerca de um ano. “Eu tive e ainda tenho problemas de autoestima”, fez questão de dizer no programa da manhã da Rádio Comercial. Não muito diferente do que fez António Horta-Osório, CEO do banco britânico Lloyds, depois de ter sofrido um esgotamento nervoso que o levou a recorrer a uma clínica especializada no tratamento de perturbações psicológicas relacionadas com o stresse e a defender o fim do tabu dos problemas mentais nas empresas, bem como o acesso que todos devem ter a essa ajuda. O gestor tem-se mostrado incansável na luta contra o estigma: encorajou o pessoal a procurar ajuda para preocupações profissionais e pessoais, criou um programa de sensibilização para executivos seniores e formou milhares de empregados em prestação de primeiros socorros mentais.
O caminho menos percorrido
O Relatório do Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, coordenado pela Universidade de Harvard e a Organização Mundial da Saúde, permitiu apurar que as perturbações do humor (depressão major e perturbação bipolar) representam 7,9% do total das doenças mentais. No documento, pode ler-se que “as mulheres apresentam um risco maior do que os homens de sofrer de perturbações depressivas e perturbações de ansiedade, enquanto os homens têm uma maior probabilidade de sofrer de perturbações do controlo dos impulsos e de perturbações pelo abuso de substâncias”.
O psiquiatra Gustavo Jesus, do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, esclarece que tais diferenças assentam em componentes biológicas (hormonais, por exemplo) e sociais. “Os homens modelam a expressão de emoções em função do papel social que ainda se espera deles, que inclui a resiliência, a proteção e serem o pilar da família”, afirma o médico, que também é diretor clínico da PIN, em Lisboa. Sem espaço para o choro fácil, a tristeza ou o isolamento social, “ficam constrangidos na manifestação dos sintomas, escondem-nos e, pior, impedem-se de pedir ajuda”.
O mal-estar inscreve-se no corpo – falta de energia e de prazer nas atividades antes apreciadas, dores osteomusculares e problemas digestivos –, e “a atenção dirige-se quase exclusivamente para o trabalho ou a atividade desportiva, a fim de ocupar a existência e não entrar em contacto com o que sentem”. O sofrimento é camuflado pelo abuso de álcool e outras substâncias tóxicas até ao dia em que uma pequena gota de água – problema financeiro, laboral, familiar ou outro, até o impacto da pandemia – faz transbordar o copo, ou seja, “a depressão não tratada”. A maioria dos homens que chegam à consulta “atrasam muito a decisão e vêm depois de muita resistência, às vezes porque a mulher lhes lançou um ultimato”.
Os dados sugerem que as tentativas de suicídio são mais frequentes nas mulheres, mas é sobretudo entre os homens que tende a ser efetivamente consumado
Não raras vezes, ocupam cargos com pressões elevadas do ponto de vista empresarial e “nem para si mesmos admitem dar, como dizem, ‘parte de fracos’, o que é um disparate, porque se autolimitam baseados num preconceito”, continua o clínico. O primeiro passo para quebrar o ciclo consiste em “explorar com o paciente o que não está bem e pegar nos sintomas que ele valoriza, a fim de tomar consciência de um desequilíbrio que pode ter solução”. Depois, levar a pessoa a reconhecer que não perde nada em tentar o tratamento. “Ultrapassadas estas duas barreiras, percebem que viviam mal há muito tempo, achando que era só uma fase e, até, o seu normal, e agradecem”, conclui Gustavo Jesus.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a depressão afeta uma em cada cinco pessoas: são mais de 264 milhões em todo o mundo, impactando negativamente o desempenho profissional e académico, pessoal e familiar. “No seu pior, a depressão podendo conduzir ao suicídio” (segunda causa de morte nas faixa etárias entre os 15 e os 29 anos). Se a estes dados juntarmos situações adversas como o desemprego e outras perdas, o stresse gerado por ser portador de uma doença e a estreita relação entre depressão e saúde física, compreende-se que se estime que atinjam o topo das doenças em 2030.
Em Portugal, o consumo de antidepressivos triplicou em sete anos, caminhando para os nove milhões de embalagens dispensadas no serviço de saúde público (e com os dados do Instituto Nacional de Estatística a mostrar que, em 2018, se registaram 29 óbitos por depressão, cinco homens e 24 mulheres).
Os dados internacionais sugerem que as tentativas de suicídio são mais frequentes nas mulheres, mas é sobretudo entre os homens que tende a ser efetivamente consumado (15,6 óbitos por 100 mil habitantes, face à média de sete no sexo feminino), com as condutas suicidárias nos homens portugueses a serem três vezes superiores às das mulheres.
Solidão, má conselheira
“Os homens são mais agressivos nas estratégias que utilizam e têm maior número de tentativas bem-sucedidas”, nota Miguel Ricou, coordenador da supervisão da linha de apoio psicológico SNS 24, a funcionar desde o dia 1 de abril. Os dados dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde permitem dizer que a média de idade dos utentes da linha se situa nos 47 anos e 32% das chamadas foram realizadas por homens e relacionadas com “ansiedade, stresse, angústia, medo, sintomatologia depressiva, gestão de emoções e adaptação em situações de crise e, por vezes, toma de medicação em excesso e ideação suicida”.
O docente da Faculdade de Medicina do Porto destaca a impulsividade, a assertividade e a falta de esperança como os três fatores determinantes para tomar decisões que não são ponderadas e poderão ter um outro desfecho: “Têm razões que não partilham quase nunca, mas se falarem delas com alguém em quem confiem, podem dar-lhes significado em vez de ficarem sós no seu mundo interno a alimentar pensamentos negativos.”
Destes três fatores, apenas a falta de esperança conta nos casos de depressão, “a pessoa está triste por estar, sem um motivo específico”, daí a necessidade de desmontar o ciclo vicioso que caracteriza a doença: desvalorização e sentimentos de incapacidade, que aumentam a sensação de tristeza e vão até ao desespero. “Às vezes conseguem representar muito bem os seus papéis sociais e aparentam estar bem, mas o sentimento de angústia alimenta este circuito.”
Outro aspeto que o psicólogo salienta é que “a ideação suicida, ou vontade de morrer, não se correlaciona com o suicídio e a grande maioria recupera dessa ideação”. E se é certo que os homens têm mais dificuldade em falar das suas emoções e em pedir ajuda, a sua experiência clínica leva-o a ser otimista: “Há 20 anos, a maioria dos meus pacientes eram mulheres e, agora, há dias em que tenho mais pacientes do sexo masculino.”
“O típico português não pede ajuda nem assume que tem um problema, recorre menos ao médico de família do que as mulheres e tende a ‘medicar-se’ com álcool, que é uma ratoeira”, avança o psiquiatra Miguel Nascimento, adjunto da direção clínica do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, lembrando que as percentagens elevadas de alcoolismo e depressão nas consultas de psiquiatria geral e de alcoologia. A “culpa” é do estigma, dos estereótipos dominantes, que faz com que “cheguem à urgência já com tentativas de suicídio”.
Mas a luz ao fundo do túnel existe, desde que se esteja presente e atento: “Quando se pergunta se têm tido pensamentos maus, ‘ideias mais negras’ como dizem os franceses, é uma porta aberta para que falem e aceitem ajuda, o não falar e isolar-se é que mata.” Quanto aos mais próximos, é importante que identifiquem pistas de sofrimento e não hesitem em sugerir algum tipo de apoio.
Luís Câmara Pestana, consultor do INFARMED na área da psiquiatria e saúde mental, confirma que “a depressão é invisível para muitos homens e mulheres, mas mais para eles”. Na depressão, prossegue, “tudo o que é uma ameaça tende a ser percebido de forma mais intensa e avassaladora” e, se for desvalorizado, pode evoluir para situações mais complicadas, como a perda do apego pela vida. “Episódios depressivos ligeiros a moderados justificam uma avaliação na consulta de medicina geral e familiar e resolvem-se com psicoterapia”. Se vão além disso e envolvem abuso de álcool e outras substâncias, pode ser necessário acompanhamento psiquiátrico e farmacológico.
Pormenores com importância
Numa altura em que os homens assumem progressivamente papéis que eram associados às mulheres, parentalidade à cabeça, e com o português Cristiano Ronaldo a mostrar ao mundo que um homem também chora e expressa afetos, essa ainda está longe de ser a regra. Estudos como o publicado no American Journal of Men’s Health, no qual se lê que “a transição para a paternidade representa um teste à saúde mental dos pais e, se o forem pela primeira vez, a depressão pós-parto pode afetá-los”, presta-se a graças, mesmo quando tem implicações no plano pessoal, conjugal e na quantidade e qualidade das interações com o bebé.
Outra investigação divulgada no Scandinavian Journal of Public Health, que avaliou a prevalência de sintomas depressivos em pais suecos há três meses, mostrou que 6,3% dos pais e 12% das mães apresentavam esses sintomas, correlacionados com um baixo nível de escolaridade, depressão prévia, entre outras variáveis.
“Aceitamos com naturalidade a doença física, ninguém sente vergonha em dizer que tem um problema renal, mas se estiver deprimido isso gera sentimentos de vergonha e estigmatização”, assinala a psicóloga e terapeuta familiar Rute Agulhas. “Continuamos a educar os rapazes para serem fortes e não chorarem e pedir ajuda torna-se, em muitos casos, ainda mais difícil.”
A docente e investigadora no ISCTE-IUL adianta que pedir ajuda psicológica tem uma conotação negativa que é preciso contrariar, pois “ainda se associa a doença mental e não à saúde mental”, ou seja, “não se pensa que ajuda a promover competências, a desenvolver recursos internos e a facilitar processos de resolução de problemas”.
Por fim, o psicólogo clínico David Neto adverte: “Com a crise económica a instalar-se após o confinamento, existe um risco de stresse acrescido para quem já estava mais sensível”. Basta recordar que crises anteriores exacerbaram quadros sintomáticos pré-existentes. O docente do ISPA-Instituto Universitário afirma ainda que o que faz deprimir um homem e uma mulher é comum, o que muda são as expectativas sociais em relação a eles: “Cada caso é um caso, mas por muito que se tenha evoluído, as diferenças salariais num casal continuam a ser mais relevantes para ele, bem como a maneira como se mostra forte perante os outros.”
Uma ideia de masculinidade que não faz bem à saúde mental. A boa notícia: está a mudar para melhor.
Depressão masculina
Como identificar os sinais de alerta e superar um problema que tem solução
Sintomas comuns
Mal-estar físico
• Dores (costas, cabeça), como se carregasse o mundo às costas, prostração, problemas de sono, falta de desejo sexual, problemas gastrointestinais
Emoções negativas
• Irritabilidade, problemas de humor, sensibilidade excessiva à crítica e sentimentos persistentes de raiva, de desconforto em estar na sua pele
Condutas de risco
• Impulsividade, agressividade, comportamentos escapistas como beber demais, abusar de drogas, jogar ou trabalhar compulsivamente
O que pode desencadear os sintomas
Fatores de risco
• Isolamento e fraca estrutura de apoio (pessoas confiáveis)
• Falta de competências para lidar com o stresse
• Historial de abuso de álcool e outras substâncias
• Antecedentes familiares (depressão, traumas)
• Doenças crónicas e circunstâncias adversas (perdas, dificuldades económicas)
O que fazer
7 pistas para sair do fundo
• Não guardar estados sombrios persistentes só para si
• Ajustar rotinas (alimentares, de exercício e sono)
• Procurar manter-se ligado, também presencialmente
• Permitir-se fazer coisas que gosta sem se avaliar
• Evitar armadilhas mentais do tipo “isto é uma fase”
• Abrir-se com quem não o julgue ou um profissional de saúde
• Dar-se tempo para sentir melhoras no humor
Fonte: Helpguide.org