O verão e o desconfinamento estão na ordem do dia e a vida segue o seu curso, também na esfera sexual e amorosa. O desafio está nos termos em que se pode conviver com os outros, especialmente se tropeçarem na categoria de potenciais parceiros. Em que registo se pode (ou não) estar diante de protagonistas que apareçam no caminho, incluindo os que entram pela porta das apps de encontros e das redes sociais, e os amigos e conhecidos com quem se teve, ou deseja ter, algo mais?
Entre a proximidade física – que pode ser uma fonte de contágio e propagação do vírus – e a renúncia a ela por tempo indeterminado há certamente uma terceira via para manter-se vivo, ou seja, “no ativo”, no chamado mercado do amor. A ideia de ter um flirt ou viver uma paixão e estar constantemente a questionar se isso vai causar dano pode ter o mesmo desfecho que as dietas estivais: mais cedo ou mais tarde, sucumbe-se ao peso das restrições e opta-se por comer à vontade sem pensar muito nisso, pelo menos um dia por semana.
Por esta altura não há praticamente ninguém que desconheça as recomendações das autoridades de saúde, em termos de cuidados sanitários: a higiene em primeiro lugar. Minimizar contactos de proximidade com os outros é um dos cinco “musts” a cumprir, a par da lavagem frequente das mãos, uso de máscara, etiqueta respiratória a tossir e desinfeção das superfícies.
Sem bares, discotecas, festivais de verão e possibilidade de ajuntamentos, canções como “Encosta-te a mim” (Jorge Palma), “Dá-me um abraço” (Miguel Gameiro) ou “Só um beijo” (Luísa Sobral) assumem contornos nostálgicos. É o fim dos amores de verão (e não só, pois nada se sabe acerca do tempo que isto vai levar)? Estará meio mundo “condenado” a romances platónicos?
A questão não é nacional, é global. As autoridades americanas lançaram um manual sobre sexo assegurando que o vírus não foi encontrado no esperma nem nos fluidos vaginais e recomendando a lavagem das mãos e dos brinquedos sexuais com sabão durante os 20 segundos da praxe, antes, durante e depois dos jogos entre adultos.
A “maldição” da proximidade
Se todos os contactos físicos estão, digamos, “interditos”, como vamos comunicar, olhos nos olhos – mais agora, com o uso da máscara – de forma asséptica? A pandemia nos vai refrear ao ponto de fugirmos dos contactos e das interações lúdicas?
O tema toca a todos, dos mais jovens, em pura fase de experimentação, aos adultos de todas as idades, sem parceiro ou sem uma relação estável. “E se lhe der um beijo? Como vou lidar com a culpa de correr o risco de infetar o meu avô (ou outro familiar pertencente ao grupo de risco) quando estiver com ele?” Pior, “devo escolher o risco do contacto com quem quero andar ou renunciar a novos encontros presenciais tentadores?”
A psicóloga Paula Pinto, coordenadora do Serviço Sexualidade em Linha, criado pelo Instituto Português da Juventude em parceria com a Associação para o Planeamento da Família, afirma que “ainda não há uma resposta clara quanto aos comportamentos individuais a ter”. De resto, as questões surgidas até agora partiram de namorados confinados em casas diferentes que queriam saber qual o risco de estarem juntos. Porém, “as pessoas têm de ter a noção de que não vão ter o mesmo à vontade que tinham na fase anterior à pandemia e fazer uma avaliação do risco que correm”.
É cedo para tecer conjeturas, seja pela ausência de dados ou pelo teor das questões atendidas, maioritariamente centradas, por enquanto, no acesso aos serviços de saúde de primeira linha (contraceção). Na linha telefónica “tivemos apenas uma ou outra questão pontual sobre se existiria risco de contágio num contexto íntimo”, informa a clínica, admitindo que “no atual cenário é expectável que exista um retraimento nos relacionamentos ocasionais”.
A arte de amar, revisitada
Após três longos meses que significaram, para muitos, a ausência de pele com pele, o sentimento de carência é incontornável. Cotovelar, tocar nas costas e outros gestos de afeto alternativos aos habituais podem ser insuficientes para manter o frágil equilíbrio entre a saúde física (evitar o contágio) e mental (a necessidade de vínculo com tradução no plano físico). “Isto não é vida” será, porventura, um lamento comum, nem sempre verbalizado, embora hiper presente, entre os que se sentem disponíveis para amar.
Para quando “aquele abraço”, o cantado por Gilberto Gil e ”O Abraço” nutritivo imortalizado na obra do pintor austríaco Gustav Klimt, no início do século 20, com dois corpos enlaçados? Quem é elegível para apertar a mão, abraçar e beijar? A este respeito, é profético o quadro “Os Amantes” (1928), do pintor belga surrealista René Magritte, e em que dois namorados se beijam com os rostos cobertos. Inspirada num acontecimento biográfico do artista (o corpo da mãe, resgatado sem vida no Rio Sambre, estava coberto pelo vestido), a obra adquire contornos perturbadores numa realidade pandémica em que homens e mulheres de todas as idades se conhecem e encontram, embora com máscara e reservas em dar as mãos. Este é o primeiro verão em que os gestos de carinho e desejo deixaram de ser inócuos e passaram, mais do que antes, a ser fruto da avaliação do grau de risco que cada um está disposto a correr. Contrariamente ao VIH – desde que o vírus surgiu, o sexo com proteção converteu-se no novo normal – as restrições impostas pelo Sars-CoV-2 deixam muitos de mãos atadas.
A psicóloga e sexóloga Vânia Beliz esclarece dúvidas a quem envia mensagens escritas, de forma gratuita e confidencial, para o WhatsApp CONTROL TALK. Nos últimos meses, “houve muita gente a fazer perguntas sobre relacionamentos à distância, brinquedos sexuais e cuidados a ter com os parceiros na hora do reencontro”. O confinamento foi um duro teste para os relacionamentos que já tinham algumas fragilidades e os convívios com desconhecidos também sofreram com isso.
“A partir do momento em que há proximidade, o risco está sempre presente e implica haver confiança, porque não basta o preservativo nem há uma vacina”. A nova realidade aplica-se ao universo dos encontros. “Para os mais jovens está a ser muito complicado voltar à normalidade possível”, acrescenta a psicoterapeuta e autora.
Segurança e sensatez
Que critérios se aplicam no que se refere a quem abraçar e beijar nesta fase (e quem excluir da equação)? A distância social é, para todos os efeitos, uma machadada na liberdade dos indivíduos, sobretudo para as pessoas sozinhas e dispostas a explorar os caminhos do prazer e do amor. Depois, há os que se isolam pelo medo da doença, o fantasma que ensombra os dias e as fantasias: “Se desconfiamos de quem se aproxima do carrinho das compras no supermercado, também o faremos com alguém de quem nos estamos a aproximar.”
A agravar o cenário, os dados recentes do Inquérito Nacional de Saúde apontam para o aumento do consumo arriscado de bebidas alcoólicas entre os portugueses (a presença do fator desinibidor e do consequente afrouxar dos cuidados de proteção): entre os inquiridos com 18 e mais anos, os que referiram ter consumido seis ou mais bebidas alcoólicas num só evento pelo menos uma vez no ano superaram os 40%, que equivale a um aumento de 33,2% (no ano de 2019, face a 2014).
Como resolver o problema sem entrar em negação ou em abstinência total? A solução parece estar na autoproteção e no estabelecimento de uma relação de confiança, onde o risco possa ter lugar. “Se antes era o preservativo para ter sexo, agora é a proteção emocional que passa a estar em cima da mesa”, remata Vânia Beliz.
Talvez a o refrão de Pedro Abrunhosa, “Tudo o que eu te dou, tu me dás a mim” faça sentido aqui. Ter ou não ter a perceção de Segurança (e condutas em conformidade) e uma boa dose de Sensatez parecem ser, mais do que nunca, os critério para dar luz verde a novas experiências amorosas e sexuais. Idealmente sem (muito) medo. Sem máscara. Sem culpa.