Ligados mas com as devidas distâncias, idealmente através de um ecrã. Seguros mas com máscara; muitas lavagens de mãos e vénias à despedida, ou toques de pés, como “manda” a Organização Mundial da Saúde. Onde está a liberdade para sentir, sem sobressaltos, a presença e o toque, no modo fraterno ou erotizado?
A nova realidade espelha-se nas notícias, nos anúncios publicitários e instala-se nas divisões da casa e da cabeça. Em Portugal, o “castigo” começou em meados de março e, mesmo com o desconfinamento, o distanciamento social começa a pesar. Alexandra Fernandes é médica de família da Unidade de Saúde Familiar (USF) de Fernão Ferro e, atualmente, está destacada para atendimento devido à Covid-19, no Seixal. Casada há 24 anos, anda com o marido de mão dada e com os braços esticados. “É assim que mantemos a distância de segurança e desinfetamos as mãos a seguir.” O casal de médicos projeta cenários para as bodas de prata que se avizinham, enquanto se concentra no presente e ensaia outras formas de viver os afetos em tempo de pandemia. “A abstinência do toque não acaba com o amor e a intimidade; já pôr o outro em risco sim.”
Hão de poder abraçar-se, fazer um piquenique na praia, num futuro que não sabem quando é. Em casa, comem à ponta da mesa, dormem em quartos separados e inventam maneiras de colmatar a insuportabilidade que sentem. Na ausência do gesto, há mais espaço para a palavra. “Dizemos ‘agora apetecia-me estar contigo, fazíamos isto e aquilo’.” Não podem tocar-se pelas mesmas razões que se tocavam antes: por amor. Estar a dois ou a três metros do filho mais novo que vive lá em casa custa. Saber que o mais velho será pai daqui a mês e meio, e ver-se privada de ter a neta no colo também custa. “Aguentamos isto por amor.”
Mas há coisas que lhe partem o coração. Não poder dar ou receber um abraço quando está com doentes a sofrer é uma delas. Lembra a paciente idosa com agravamento da insuficiência cardíaca e um grau de demência, embora capaz de reconhecer a médica: “Estendia a mão à procura da minha e a luva não lhe devolvia o conforto do toque.” No acompanhamento a pessoas com Covid-19, equipada da cabeça aos pés, a legenda pode fazer a diferença na relação com os doentes. “O que eu faria agora era pegar-lhe na mão” ou “não vê a minha cara, mas por baixo da máscara estou a sorrir.” Outra dor de alma é “o isolamento forçado e não compreendido por muitos idosos”.
Sequelas da privação
Há pelo menos meio século que os estudos de Psicologia da Saúde confirmam o suporte social enquanto variável promotora de bem-estar e de longevidade, capaz de amortecer ou de amparar golpes de toda a espécie, evitando a deriva e o abatimento emocionais. Como faremos sem apertos de mão, beijos, abraços, encontros sexuais, jogos, atividades, eventos e serviços que envolvam corpo a corpo? O bicho continua a mexer e o toque humano converteu-se num interdito: intocáveis, no sentido literal, somos todos nós. Como é que a falta do toque e da proximidade física nos podem tolher e afetar, ao ponto de, juntamente com os omnipresentes rituais de desinfeção e de proteção, nos levar ao desespero e à loucura?
Num artigo publicado em março, no site de notícias de saúde e medicina STAT, o cientista e epidemiologista grego John Ioannidis, da universidade norte-americana de Stanford, alertava para os efeitos colaterais das medidas de controlo da pandemia: persistirem por “meses ou anos” é sinónimo de “consequências desconhecidas, a curto e a longo prazo ” na saúde mental, na sociedade e na economia.
No mesmo mês, um estudo publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health, sobre o impacto psicológico do surto da Covid-19 na China, mostrou que mais de metade dos inquiridos referiu que o impacto era moderado a severo e um terço reportou níveis de ansiedade moderados a severos. Estudantes, mulheres e sintomas físicos específicos foram associados a níveis mais elevados de stresse, ansiedade e depressão. A revisão de 24 artigos científicos, publicada na revista científica The Lancet, identificou o stresse pós-traumático, a confusão e a raiva como os efeitos psicológicos negativos mais comuns na quarentena.
No nosso país, os dados da consultora IQVIA Portugal permitem afirmar que o consumo de antidepressivos, antipsicóticos e tranquilizantes, em março deste ano, aumentou quase um terço comparativamente ao mesmo mês do ano anterior, com mais de 2,7 milhões de embalagens vendidas, embora as razões estejam por conhecer. A linha de apoio psicológico SNS24, a funcionar desde 1 de abril, regista uma média de 300 chamadas diárias, um número aquém das 700 que os 63 profissionais estão preparados para atender. Miguel Ricou, coordenador da supervisão da linha, esclarece que o controlo da infeção e a proteção pessoal estão no topo das preocupações dos cidadãos que ligam, sendo expectável que o foco mude num futuro próximo: “Os problemas psicológicos decorrentes da falta de socialização, que nos equilibra, só vão começar a surgir mais tarde, quando as pessoas voltarem às rotinas.”
A psicóloga clínica Manuela Peixoto faz um retrato do que tem chegado à linha. “Há pais em isolamento profilático que sofrem e que se sentem negligentes por não abraçarem os filhos pequenos.” Desabafos de “idosos que vão ao supermercado e se sentem ostracizados, quando outros se afastam para os proteger…” No atual cenário, em que foi ultrapassada a barreira das 500 mortes e em que há quase 20 mil infetados, ligam “pessoas que choram, privadas de ver diariamente o cônjuge, de lhe darem a mão no lar, temendo não poder sequer despedir-se dele”. Outros “não conseguem dormir, com receio e culpa se vierem a causar infeção ou a morte de alguém”. Na linha procura-se amenizar a angústia da incerteza, o medo e a dor, mas “ninguém estava preparado para isto”. Ainda é cedo para avaliar o impacto na vida conjugal: “Recebi uma chamada de alguém que voltou a juntar-se à pessoa de quem se tinha separado para ter apoio nesta fase”, nota a psicóloga. E conclui: “O prolongamento do estado de emergência vai trazer questões relacionais.”
Pedro Afonso, professor auxiliar de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, admite que vai levar muitos anos a compreender o impacto das restrições sociais na saúde mental, e acrescenta: “Quem vive só e já tinha perturbações ansiosas e depressivas fica mais vulnerável a alterações do humor, a perturbações do sono e a condutas agressivas.” Nas consultas, é frequente o lamento “sinto muita falta de um abraço, de um beijo, do toque”, além das queixas de quem não vê familiares internados com doenças graves.
Desejo e sexo sim, pele com pele (ainda) não
O novo vírus converteu o beijo e os jogos adultos em algo com elevado potencial de risco, mas as pessoas não vão deixar de procurar o sexo e o amor. As plataformas de encontros adaptam-se e falar da Covid-19 passou a fazer parte do jogo. A grande aposta, em tempos de quarentena, é convidar utilizadores a conhecer pessoas e interagir com elas sem dar o corpo ao manifesto, beneficiando, temporariamente, de algumas vantagens.
O popular Tinder tornou o acesso grátis a funcionalidades pagas como o Tinder Passaporte, que permite pesquisar e fazer match a partir de qualquer lugar do mundo, só que no plano virtual, e tornar a quarentena menos solitária. Noutras apps de encontros e nas redes sociais, o apelo “queres ser a minha quarentena (em vez de Valentim)” era partilhado sem estranheza, no início do chamado isolamento social.
Com menos tráfego nas ruas e o fim das concentrações em bares e outros locais públicos, o movimento desvia-se para rotas alternativas. O site Pornhub disponibilizou gratuitamente conteúdos premium, também em Portugal, a fim de “aguentar” as pessoas em casa, recomendando a lavagem frequente das mãos. Não será propriamente como na canção “Let’s get physical”, dos idos anos 1980, mas é alguma coisa. “Temos a comunicação online em tempo real e com imagem, que ocorre no cérebro e permite ter sensações, mas sem o toque do outro”, afirma a sexóloga Marta Crawford. A conquista à distância, sem risco de contágio, está viva e recomenda-se. Era assim no tempo dos nossos avós, que trocavam cartas e, décadas depois, com o canal de conversa Mirc. É assim com as aplicações de encontros e suas potencialidades, mas as circunstâncias de cada um entram na equação: “Pessoas que trabalham no limite e estão exaustas não têm espaço para o desejo sexual e viram-se para dentro; outras querem alegrar a vida e viram-se para o consumo de porno, a masturbação e a comunicação online, sem corpo a corpo.” Nesta fase, toda a imaginação é bem-vinda: “Se não pode dançar com o parceiro, vale fazê-lo com a almofada, a vassoura! Na falta de parceiro para dançar…”, conclui a sexóloga.
Entretanto, solteiros que têm o abraço do familiar e os mimos do cão, em casa, podem sentir menos a falta de contacto humano, mas “os solitários sentirão mais necessidade de corpo e podem ver agravadas as dificuldades de interação, se já as tinham”. Ajuda pensar que “mais dois ou três meses sem ir à procura não é o fim do mundo”. Ou tirar o melhor partido da situação. Quando a contenção social abrandar, “é natural que as pessoas permaneçam cautelosas no contacto físico”, refere Marta Crawford, embora a História também mostre que “haverá sempre quem arrisque, por não querer saber ou achar que está impune”.
Envolver-se de outras formas
Uma evidência há muito demonstrada por estudos em Psicologia do Desenvolvimento e sobre a vinculação é que nascemos para ser tocados e para tocar. O toque e as carícias libertam oxitocina, que está presente nas interações entre mãe e bebé, durante o orgasmo e nos abraços. “O toque transmite confiança, segurança e até amor”, afirma a osteopata e instrutora de ioga Cristina Luís Coelho.
À semelhança de muitos profissionais que trabalham com a proximidade física, Cristina suspendeu as aulas e as marcações. Se tem sido um desafio para ela, também não o está a ser menos para os pacientes e alunos. Podia ser pior sem a tecnologia: os vídeos online que vai fazendo e a partilha compensam, mas não substituem a presença física, que permite “a possibilidade de monitorizar movimentos e ajustar posições e o estar em grupo”. Quando o cenário mudar, Cristina interroga-se acerca de como será a transição: “Voltar a olhar os outros na rua, e vencer o medo de abraçar, pode não ser tão fácil.”
A pensar nos efeitos das restrições sociais devidas à Covid-19, o investigador Rui Costa, do William James Center for Research, do ISPA – Instituto Universitário, tem em curso um questionário confidencial para estudar as consequências no comportamento alimentar, nas relações interpessoais, no uso de redes sociais e no comportamento sexual. A meta é “compreender como prestar apoio psicológico a pessoas confinadas em casa e fazer uma melhor gestão social durante pandemias”, dando continuidade às pesquisas realizadas com a colega Ivone Patrão sobre o uso problemático da internet e sentimentos de solidão.
No artigo científico com uma amostra de 500 estudantes de liceu e da universidade, a equipa concluiu que a procura de companhia real no registo online gerava no cérebro a sensação de continuar só, ou ainda mais só, por a experiência digital não ser percebida pelo cérebro como suficientemente rica ao nível sensorial. “O feedback corporal no registo face a face é mesmo necessário para produzir sensações de conexão social profunda”, assegura Rui Costa.
Se assim não for, “surgem sentimentos de vazio, de isolamento e estados ansiosos e depressivos”. Na atual investigação, a questão é saber se a maior permanência nas redes sociais durante o confinamento vai agravar esses sentimentos: “É duvidoso que a comunicação online venha a compensar a carência do registo presencial físico”, remata o investigador.