As laranjas chamam por nós, do alto das árvores do pomar que nos proporciona uma abençoada sombra nesta manhã escaldante, em pleno Alentejo. Enquanto as saboreamos, vamos deixando tombar os pingos de sumo em cima da terra em que afundamos os ténis. E as cascas hão de ser largadas na Natureza, à falta de outro destino mais citadino. Também provamos uma nêspera e um alperce, que em setembro já terão certificação biológica, frutos que fazem desta estação uma das mais apetitosas do ano.
Estamos na Herdade do Vale das Dúvidas, em Santana, a meio caminho entre Évora e Portel, e viemos aqui encontrar o chefe João Rodrigues, 43 anos, a meio do seu périplo alentejano para alimentar o projeto Matéria. O site – tudo se passa em projecto.pt – já está lançado, mas o conteúdo será sempre um work in progress, como haveremos de perceber. E já que teve o seu Feitoria (uma estrela Michelin), no hotel Altis Belém, em Lisboa, fechado até 18 de junho, aproveitou o desconfinamento, e o fraco número de casos nesta região, para adiantar serviço.
Isso resultará numa dúzia de visitas a produtores. Uns já os conhece, por serem seus fornecedores, como é o caso desta herdade; outros são absolutas surpresas. De qualquer forma, não entra ninguém no site sem que João Rodrigues passe umas horas com as pessoas, ouvindo as suas histórias. Tiago Pais, antigo jornalista, aponta os pormenores num caderninho e tira fotografias. São dele os textos e as imagens que se juntam aos responsáveis pelos produtos.

Foto: Luis Barra
Aqui há uma horta, alimentada pelos desejos dos chefes-clientes, borregos, azeitonas e cortiça. Mas o que interessa para o caso são os legumes saborosos e à la carte e os animais criados à solta. Quando vamos até junto deles, estão de tal maneira embrenhados no pasto que os alimenta que quase não se vislumbram, no meio dos cardos lilases, infestantes, que embelezam o campo.
Relação com a terra
Nuno Serra, 43 anos, engenheiro florestal, é o cicerone da visita e nem suspira com o calor, como todos os outros, sempre à procura de um sítio mais sombreado. Gere a propriedade e decidiu entrar em contacto com o chefe para poder entrar no Matéria. Não será tarefa difícil, porque este modo de produção está em perfeita sintonia com o que se busca no projeto – essencialmente, uma relação direta com a terra. “Procuramos produtos íntegros, práticas éticas e amigas do ambiente. Além de nos focarmos no lado humano da produção”, resume o mentor da ideia, que nasceu em 2015. No fundo, é dar lastro à estratégia do Prado ao Prato, para criar um sistema alimentar saudável e totalmente sustentável, defendida recentemente pela União Europeia.
No site, podemos procurar as empresas por região e por tipo de produto e, neste momento, há mais de 50 por onde escolher. Quando as viagens acabarem, João Rodrigues conta ter à volta de uma centena de sugestões para que o consumidor faça escolhas conscientes, com base na história de quem está à frente do negócio, nas fotografias e no contacto que consta na página de cada um. Assim, o chefe já pode lavar daí as suas mãos porque a via fica aberta. “Sabemos que este tipo de produção nunca vai alimentar o País, mas quantos mais consumirem de acordo com as regras da Natureza, melhor para todos. Sem fundamentalismos.” Próxima paragem? Minho e ilhas.
As dicas sobre quais os sítios a visitar, recolhe-as junto da comunidade gastronómica, dos amigos da cozinha. Por estes dias, está com ele Leopoldo Calhau, da taberna com o seu apelido, no bairro lisboeta da Mouraria. A escolha pareceu-lhe óbvia, por ter família em Vila Alva. É, aliás, nessa aldeia, perto da Vidigueira, que os três dormem. E será nas redondezas que irão a uma produção de mel e outra de queijo, na última paragem desta viagem alentejana.
Além de indagar como se alimentam os borregos, João Rodrigues questiona Nuno Serra acerca de locais onde se pode almoçar por aqui. Acabamos no País das Uvas, uma casa em Vila de Frades que faz vinho da talha há 15 anos, embalado com a etiqueta Honrado. São essas garrafas de barro que vertem sobre os copos para acompanhar os deliciosos ovos mexidos com cogumelos, outros com espargos da mesma qualidade, o ensopado de borrego e a tomatada com ovo escalfado – e sobre este último prato poderíamos escrever todo um tratado.
Com selo de qualidade
Há cerca de 50 produtores no site Matéria. Aqui ficam cinco exemplos de boas práticas
1
Granja dos Moinhos
Queijo de cabra, feito na Maçussa, no Ribatejo
Adolfo Henriques
2
Algaplus
Sistema de produção de microalgas marinhas e derivados, em Ílhavo
Helena Abreu e Rui Pereira
3
Aquaprime Oysters
Produção de ostras, em Faro
Paulo Grey
4
Diálogos do Bosque
Plantação de figos da Índia, em Montemor-o-Novo
Nuno Pires e Cristina Simões
5
Lugar do Olhar Feliz
Pomar de citrinos, no Cercal do Alentejo
Ann Kenny e Jean-Paul Brigand