Os belgas Koen Lizen, 49 anos, e Veronique Claus, 61, anos, não se queixam da vista que lhes calhou em sorte (ou será melhor escrever azar?): quando olham para um lado, lá está o Cristo Rei, de braços em cruz para a cidade; se rodarem a cabeça para o ponto oposto, abre-se-lhes a Praça do Comércio, por estes dias um postal de Lisboa só deles. O administrador e a instrutora de vela estão, desde o dia 20 de março, ancorados literalmente no meio do Tejo, sem poderem pisar terra firme. E aguardam, pacientemente, que as autoridades lhes devolvam uma nesga de liberdade de circulação.
Saíram do Algarve há quase um mês, com mais três estrangeiras (uma americana, uma suíça e uma inglesa), depois de andarem em treinos de vela pelo sul. A meio do caminho, foram apanhados por um estado de emergência inesperado.Quando saiu a lei que proíbe as embarcações de recreio de recreio de atracarem nos portos portugueses, já levavam dias no mar.
Mas foi quando tentaram sair em Sines, para se abastecerem e tomarem um banho na marina, que a Capitania os impediu de saírem do veleiro em que viajavam, com matrícula holandesa. E mandaram-nos, recambiados, para Lisboa.
Chegados à capital, voltaram a ser corridos da marina de Oeiras. Tentaram, depois, o Seixal. Foi lá que a polícia marítima lhes deu as coordenadas para lançarem a âncora – o tal ponto, a meio caminho entre a margem sul e a norte, com a melhor vista que se pode desejar numa quarentena. “Somos o único veleiro no Tejo”, conta Koen, ainda com alguma boa disposição, depois de mais de três semanas de clausura num Archi-Dome de 15 metros, agora já só com Veronique.
As outras três estrangeiras conseguiram sair, pois, através das suas embaixadas, lá arranjaram um bilhete de avião que as levou da água diretamente ao aeroporto e depois às suas casas, onde já se encontram, a salvo.
Uma casa portuguesa à sua espera
A capitã do barco, na realidade, vive dentro dele, normalmente em Olhão, em frente à ilha Culatra. E é para lá que irá, assim que o imbróglio de Koen se resolver. É que este belga mora em Lisboa desde janeiro, depois de muitos anos no Brasil, numa casa que comprou na rua de São Bento. Só que o seu processo de autorização de residência ainda não está completo. E para a Bélgica, mesmo que quisesse não poderia regressar, porque não há avião que o leve.
O mais curioso é que, para terminar esse processo de legalização, Koen teria de ir à câmara de Lisboa para tratar do assunto presencialmente, coisa que está proibido de fazer. Em alternativa, já apresentou à Capitania um documento da Junta de Freguesia, atestando que a sua casa é nessa rua lisboeta.
“Caso isto não se resolva, e eu sei que as pessoas estão a tentar ajudar-me, vamos pedir autorização para velejar até ao sul do País e ficar lá até a proibição acabar”, conta Koen, depois de muito pensar na sua vida. “Acho que Portugal está a reagir muito bem com estas medidas, mas gostava de poder ir para casa. Tenho um advogado a representar-me e a tentar solucionar a questão”, desabafa, algo desanimado.
Nos primeiros dias de isolamento no rio, os amigos usavam um barco táxi que lhes levava comida e também muitos euros da conta bancária. Então, e com o prolongar dos dias nesta situação, têm pedido para atracar na doca de Alcântara, para apanharem mantimentos que os amigos lhes levam e abastecerem-se de água potável. Mas nunca passam do portão da marina e estão sempre debaixo de olho das autoridades marítimas. As transações são rápidas e os contactos fugazes.
Nos tempos livres, que agora são quase todos, Koen aproveitar para estudar a teoria da arte de velejar, através de aulas de duas horas diárias. Depois, tenta despachar alguma coisa do seu trabalho, que nesta altura abrandou bastante. Além disso, cozinha com a Veronique, dividem-se nas tarefas inerentes à vida num barco e filosofam sobre isto de estarem presos na natureza, rodeados de água por todos os lados. E com a tal vista maravilhosa.
A Capitania do Porto de Lisboa não quis comentar a questão inerente a este veleiro, remetendo quaisquer explicações para as autoridades de saúde ou mesmo para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Enquanto isso, Koen e Veronique permanecem sozinhos no Tejo, esperando uma aberta na meteorologia que torne os seus dias mais tranquilos. Pelo menos, sentem-se acompanhados no grupo de Facebook Trapped@sea a Covid-19 situation. Lá, reúnem-se mais de 150 estrangeiros, apanhados no mar português, a discutir virtualmente a forma mais sensata de resolver o facto de as autoridades não os deixarem ficar em marinas nacionais, irem a terra ou zarparem para os seus países de origem. Definitivamente, presos numa âncora, à deriva no oceano.