Em pequeno queria ser cientista. A descoberta espacial fascinou-o na adolescência. Mas, quando entrou para a universidade, foi conquistado por outra paixão: a Inteligência Artificial (IA). E nunca mais a largou. Especializou-se na compreensão da linguagem pelas máquinas e hoje, aos 65 anos, Fernando Pereira fala do seu trabalho como se de uma nova descoberta se tratasse. Lidera uma equipa de investigadores numa das maiores empresas do planeta, a Google. Move-se como peixe na água no mundo dos algoritmos, da compreensão da linguagem por parte das máquinas e mostra com orgulho alguns dos desenvolvimentos para os quais contribuiu, como o sistema de tradução ou o Google Assistant.
A sua vida foi dedicada à investigação e, neste gigante da informática, tem tempo e meios para fazer o que mais gosta. Está agora a iniciar um novo projeto que passa por tentar criar um algoritmo que permitirá às máquinas fazer conexões entre a linguagem e o contexto físico e social da conversa. Este é um projeto a longo prazo. Fernando Pereira admite que dentro de cinco anos poderá apresentar alguns primeiros resultados. “Serão ainda muito poucos, uma ínfima parte do que queremos fazer, mas já poderão ter alguma aplicação prática”, diz.
E pode falar desse projeto? “São coisas que parecem triviais mas que seriam impossíveis de fazer hoje em dia”. E pode dar um exemplo? “Estou a olhar para a rua e consigo descrever o cenário: uma praça com tráfego automóvel elevado, cercado de edifícios e com pessoas a circular na rua. Eu consigo dizer isto, mas as máquinas não. Não existe nenhum sistema que permita ao computador fazer esta descrição, de ter capacidade de sintetizar, rapidamente, uma cena extremamente complexa. Mas queremos ir mais longe e dar instruções à máquina para que esta perceba, no mesmo cenário, que os carros estão parados porque existe um semáforo. Para nós, tudo isto é muito intuitivo, mas para o computador é um processo muito complicado que exige muita investigação e desenvolvimento de novos sistemas”, esclarece.
Parece uma cena de um qualquer filme de ficção, mas Fernando Pereira diz que é possível de executar com a combinação de processos de auto aprendizagem das máquinas, de “avanços muitos rápidos que têm sido feitos” em matéria visão computacional e de “ideias que existem na Google sobre como desenvolver modelos de situações complexas”. Tudo conjugado, as máquinas poderão fazer descrições pormenorizadas de determinados cenários.
E porque é que isso é interessante? “As possibilidades são inúmeras. Em termos mais práticos, poderemos desenvolver sistemas de ajuda para invisuais. Se quiser uma situação mais sofisticada, imagine que quer fazer uma pesquisa de uma imagem com um certo tipo de conteúdo específico, que envolve acontecimentos ou ações complexas. Com esta tecnologia poderá ser possível”, afirma.
Mas não só. Este tipo de investigação irá permitir o melhoramento do processamento de linguagem pelas máquinas, a área em que Fernando Pereira está mais envolvido. Esta nova tecnologia será necessária para que os sistemas que usam linguagem possam “ter mais conteúdo nas suas palavras e consigam interpretar como o tempo e o espaço estão organizados onde a ação se desenvolve”. Algo que atualmente é impossível para qualquer software.

Luís Barra
De Lisboa à Califórnia
Fernando Pereira nasceu em Queluz, mas as suas primeiras memórias remontam às Avenidas Novas, em Lisboa, já depois dos pais se terem mudado para a Avenida Defensores de Chaves. Por ali cresceu e brincou até entrar para o Instituto Superior Técnico. Queria ser engenheiro. Escolheu Eletrotécnica. Dois anos bastaram para perceber que estava no curso errado. Mudou-se para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e licenciou-se em Matemática.
Foi nesta Faculdade que teve o seu primeiro contacto com a IA, através do professor Luís Moniz Pereira, que lhe facultou os primeiros estudos sobre a matéria. Para Fernando Pereira foi a descoberta de um mundo novo. Nos remotos anos setenta pensar em máquinas dotadas de inteligência era um mero exercício de ficção científica.
Acabada a licenciatura, Fernando Pereira entrou para o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), onde teve contacto com programação. O computador era um velhinho NCR Elliot 4 100, que ocupava quase um divisão e era “alimentado” por cartões perfurados. No LNEC esteve ainda envolvido num estudo sobre mobilidade urbana, mas depressa percebeu que a investigação era parca e tinha pouco futuro. Estava em 1977, três anos após a revolução e não havia verbas para investigação.
“Nessa altura tinha uma grande contradição na minha vida, uma lealdade dividida entre a matemática pura e os trabalhos de pesquisa nesta área da programação”, lembra.
Através do British Council consegue uma bolsa para ir fazer um doutoramento na Universidade de Edimburgo. Aí teve outros contactos com a realidade da IA. “Comecei a trabalhar no processamento de linguagem natural numa altura em que não existia qualquer processo de aprendizagem das máquinas como o que temos atualmente”.
Quando acabou o doutoramento teve uma proposta para ficar em Edimburgo e outra para ir como investigador para o SRI (Stanford Research Institute), nos EUA. O clima húmido e frio da Escócia perdeu para o sol e a luz da Califórnia. Mudou-se para a costa oeste dos EUA, mas ironia das ironias, no primeiro dia apanhou uma chuvada como há muito não se fazia sentir para aquela região. Pior do que acontecia na capital escocesa. Mas nem isso o desmotivou.
“Não me mudei apenas por causa do clima. Foi também pela luz. Edimburgo é uma cidade muito escura no inverno”, lembra. Já nos EUA a sua carreira teve várias mudanças. Começou a lecionar na Universidade de Princeton, onde se torna diretor do departamento de informática. Iniciou ainda duas startups e foi quadro do gigante norte-americano de telecomunicações AT&T, onde, em 2001, um alto quadro da empresa lhe disse que os motores de busca nunca seriam um negócio. Sete anos depois, Fernando Pereira ingressava no motor de busca Google, que gere um dos maiores negócios do planeta.
Longe da vista…
A incursão para os EUA acabou, aos poucos, por desligar-se do país de origem. “Perdi a ligação a muitas pessoas porque, simplesmente, não tinha tempo. Estive envolvido em vários projetos, tinha os filhos na escola, com as suas rotinas. Era difícil planear as viagens”, diz. Mas não perdeu alguns hábitos bem portugueses. A primeira coisa que faz de manhã é beber um café expresso. De preferência duplo.
Com o passar dos anos e com a vida estabilizada na Google, passou a viajar mais para Portugal. E como reconhece o facto dos filhos já terem as suas próprias vidas também facilitou o processo.
Nascidos nos EUA e com toda uma vida passada naquele país, os dois filhos já são “americanos”, embora a filha tenha um maior “interesse em conhecer as suas raízes”.
Em Portugal mantém ainda contacto com o professor catedrático Luís Moniz Pereira, o tal que, nos anos setenta, o despertou para estas coisas esotéricas e que dirige o centro de IA da Universidade Nova de Lisboa.
Como professor universitário nos EUA, Fernando Pereira teve contacto com alguns alunos portugueses que para ali foram estudar. Com eles apercebeu-se de uma nova realidade do que estava a ser feito no seu País de origem. “Tive como aluno o João Graça, um dos fundadores da Unbabel, uma startup que tem um projeto muito interessante. E, como trabalham na minha área, tem sido muito interessante ver o trabalho deles a evoluir. Agrada-me ter esta ligação às gerações mais novas e ver os trabalhos que estão a desenvolver”.
(Artigo publicado na VISÃO 1293 de 14 de dezembro)