Num acórdão com data desta quinta-feira, 9, dois juízes-conselheiros da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) resumem num parágrafo a sua decisão de deferir o pedido feito pelo Ministério Público (MP) para afastar o desembargador Rui Rangel de relator de uma decisão sobre mais um recurso, para a Relação de Lisboa, de José Sócrates, no processo da Operação Marquês, em que o antigo primeiro-ministro está indiciado por corrupção e branqueamento de capitais.
Eis o que se lê no mencionado parágrafo: “(…) É de admitir, a partir do senso e experiência comuns, que qualquer cidadão de formação média da comunidade possa contestar ou pôr em causa a imparcialidade do Senhor Desembargador recusado, (…) possibilidade tanto mais previsível porquanto ‘a estrutura normativa das sociedades atuais, que usualmente reclamam rigor e transparência, vêm cada vez mais exigindo exteriorização objetiva de demonstração de probidade funcional, com acentuado ênfase no velho brocardo da mulher de César, não basta sê-lo, é preciso parecê-lo'” – citação aproveitada de um outro acórdão do STJ.
Para a sua decisão, os juízes-conselheiros focaram-se num debate transmitido na TVI a 10 de junho de 2015, após Sócrates ter recusado a prisão domiciliária com pulseira eletrónica, decretada pelo juiz de instrução Carlos Alexandre, o que fez com que o antigo governante regressasse, na altura, à sua cela na cadeia de Évora. O desembargador Rui Rangel participou naquele debate e aí proferiu uma declaração polémica. Disse que a Justiça estava a reagir “epidermicamente, de forma vingativa, só porque o arguido usou de um direito e de uma prerrogativa legal”. Por esta afirmação, o juiz foi condenado, pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), a uma sanção disciplinar de 15 dias de multa, por “violação do dever de reserva”. Rui Rangel recorreu, mas a Secção do Contencioso do STJ confirmou a deliberação do CSM.
Agora, nas alegações que apresentou no Supremo para conseguir o afastamento do desembargador de decisões no processo da Operação Marquês, o MP tirou partido do que Rui Rangel disse naquele debate. “O epíteto de ‘decisão vingativa’ é, em nosso entender, revelador de um prejuízo sobre os decisores de 1.ª instância, neste processo, uma vez que revela que o Sr. Juiz Desembargador não considerou sequer que tivesse havido uma ponderação entre os riscos identificados e a suficiência do seu acautelamento para o proferir da decisão em causa”, lê-se no argumentário do MP, que também sai em defesa do juiz de instrução Carlos Alexandre. “Perante um leque de opções possíveis sobre a justificação da decisão de manter a prisão preventiva, (…) verifica-se que [Rui Rangel] escolheu aquela que lhe permitia lançar a imputação de uma atitude mesquinha relativamente ao decisor de 1.ª instância.”
Os juízes-conselheiros do STJ acolheram esta alegação do MP. “Assume toda a relevância, enquanto fundamento da recusa suscitada”, lê-se no seu acórdão. “Os comentários tecidos no referido debate transmitido na TVI vulneram, de forma séria e grave, pela valoração objetiva feita pelo cidadão médio e a partir do senso e experiência comuns, a imparcialidade do julgador, a neutralidade e indiferença que têm necessariamente de se verificar.” E assim fica o desembargador Rui Rangel impedido de intervir no processo NUIPC 122/13.8TELSB, vulgo Operação Marquês, do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Almoço apanhado nas escutas
Nas suas alegações, o MP foi com tudo. Até com a revelação de que, em setembro de 2014, cerca de dois meses antes de José Sócrates ser detido, apanhou em escutas telefónicas a combinação de um almoço entre o ex-primeiro-ministro e o juiz Rui Rangel. “Por via das interceções telefónicas aos meios de comunicação utilizados pelo arguido José Sócrates, verificou-se que, por iniciativa do mesmo, foi estabelecido contacto telefónico, na data de 11 de setembro de 2014, entre o arguido e o Sr. Juiz Desembargador Rui Rangel, visando a marcação de um almoço”, diz o MP. “Mais revelam aquelas interceções que, no dia 18 do mesmo mês, após tentativa de telefonema por si feito para o arguido José Sócrates, mas não atendido, o Sr. Juiz Desembargador deixou mensagem no telemóvel daquele arguido, pedindo-lhe para lhe devolver a chamada, para combinarem o almoço.”
O objetivo da confidência do MP é óbvio: “Afigura-se, assim, não estar em causa um mero conhecimento social, determinado pelo exercício de funções públicas quando necessariamente se cruzam, mas sim um relacionamento pessoal.”
Nas contra-alegações em que se defende dos ataques do MP, o juiz Rui Rangel indigna-se. “Trata-se da utilização pelo Ministério Público, absolutamente abusiva e ilícita, em sede do presente incidente, de um meio de obtenção de prova em processo penal” – o que, segundo o desembargador, “deveria determinar o desentranhamento e destruição” do documento comprovativo facultado pelo MP.
Rui Rangel esclarece que falou pela primeira vez com Sócrates na Basílica da Estrela, em Lisboa, no velório do seu irmão Emídio Rangel, falecido em 13 de agosto de 2014. “No decorrer dessa breve conversa”, relata o juiz, “sempre no âmbito do circunstancialismo de apresentação de pêsames”, Sócrates disse, num “ato de contrição”, não ter “estado à altura do merecimento da amizade” que Emídio Rangel lhe dedicara. E manifestou depois “o desejo de realizar um almoço” com Rui Rangel e o jornalista David Borges, “de evocação e ‘homenagem'” a Emídio Rangel. Para o efeito, ficaram, “vagamente, de falar posteriormente”.
De seguida, Rui Rangel e o filho decidiram “ir passar uns dias a Nova Iorque”, para recuperarem o seu “estado anímico e emocional, que tinha ficado deveras abalado”. À chegada, ainda no aeroporto de Newark, continua o juiz a relatar, Rui Rangel cruzou-se, “por mero acaso”, com Sócrates, na zona de controlo de passaportes. Cumprimentaram-se, trocaram “palavras de circunstância” e renovaram a “intenção de realizar o projetado (mas nunca agendado) almoço (com o jornalista David Borges)” – este grande amigo de Emídio Rangel, com quem esteve na fundação da TSF.
“Portanto, por junto, o signatário encontrou-se duas vezes com o arguido em apreço: uma vez no velório do seu irmão e outra vez, fortuitamente, num aeroporto”, escreve Rui Rangel a bold.
Nas suas contra-alegações, o juiz diz estar a viver “um inferno” e a ser alvo de um “assassínio de caráter” desde que, enquanto relator de uma decisão de um coletivo da Relação de Lisboa, em setembro de 2015, deu razão a um recurso dos advogados de Sócrates, determinando o fim do segredo de Justiça interno no processo da Operação Marquês, que o procurador Rosário Teixeira e o juiz de instrução Carlos Alexandre pretendiam que continuasse a vigorar.
Para retratar a situação em que afirma encontrar-se, Rui Rangel reproduz uma parte de um interrogatório do juiz Carlos Alexandre a António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN) e principal arguido do processo dos Vistos Gold, documento a que teve acesso após pedido oficial.
O desembargador refere ter ido a Angola, “devida e previamente autorizado” pelo presidente da Relação de Lisboa, para “dar formação aos juízes do Tribunal Constitucional daquele país”. Na mesma altura, António Figueiredo, ainda presidente do IRN, acompanhava a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, numa visita a Angola. Figueiredo estava já sob escuta e a PJ intercetou-lhe um telefonema para outro desembargador, Antero Luís: “Está cá um tal Rangel”, disse àquele magistrado.
Regressando ao interrogatório de Carlos Alexandre a António Figueiredo, o desembargador Rui Rangel escreve que “o Senhor Juiz de Instrução despendeu cerca de 20 minutos a tentar que aquele arguido verbalizasse o nome do signatário, como sendo o ‘outro concorrente’ que ‘ia ganhar milhões com as alterações legislativas que iriam ocorrer em Angola'”.
Ouvido tal interrogatório, ataca Rui Rangel, o juiz Carlos Alexandre foi “ao ponto de deixar crer àquele arguido que a sua liberdade estaria dependente de tal ‘confissão’, tendo aquele, já exausto com tanta insistência (e ansioso por deixar a situação de privação da liberdade), dirigindo-se ao Sr. Juiz de Instrução, afirmado o seguinte: ‘Ó Senhor Doutor, eu não sei o que quer que lhe diga'”.
Comenta Rui Rangel: “O que qualquer jurista médio (…) pode retirar daquele interrogatório é que estaria a ser ‘oferecida’ a alteração da medida de coação de prisão preventiva pela incriminação de uma pessoa cujo apelido (que não é exclusivo do signatário) era ‘Rangel’.”
O desembargador perdeu, mas ficaram registados os seus desabafos.