Uma caixinha com libras oferecidas pela sua avó, grande matriarca da família. Foi o que se lembrou de meter no bolso quando, ao fim da manhã de terça feira, se começou a preparar para as chamas. Não passava de uma eventualidade, é certo, mas desde a madrugada que o fogo, ateado em S. Roque, ameaçava galgar a serra. Passou a noite atento, a tentar seguir as pegadas do lume que, há uns anos, lhe passara já à porta de casa, no Monte.
De manhã, recebe um pedido de ajuda, numa unidade hoteleira da família. Coisa pouca, foi rapidamente controlado e Pedro Tavares da Silva nem teve de sair de casa. Por lá ficou, na sua vida, até se reunir, em petit comité, com vizinhos e amigos para delinear a estratégia a seguir, se o pior cenário se concretizasse: com os terrenos sempre limpos (não fosse o diabo tecê-las), havia que fazer perímetros de segurança à volta das casas, molhar os terrenos, os telhados, as paredes, os jardins. Ensopar tudo. Às 14h30, chegaram uns primos, para ajudar, se fosse preciso. Mais braços nunca são demais, quando o vento se enfurece e o fogo se exalta. Estava tudo pensado, tudo coordenado. “Desliga o gaz”, escrevia-lhe uma irmã, por sms. Pedro não se tinha esquecido. O gás estava desligado e o tanque (de gás) preparado para ser extinto, se tudo se descontrolasse. Às 15 e 31, a família recebia uma foto com o comentário “corta-fogo pronto”, seguido de dois smiles.
A descontração não durou mais de hora e meia. O cenário mudara. “O fogo parecia tentar ir à floresta (do Monte) e o vento parecia puxá-lo para baixo”, conta Pedro. No chat familiar, surgia uma foto com nevoeiro cerrado – fumo intenso. O “está a ficar complicado” chegava um quarto de hora depois. Os bombeiros já faziam contrafogo nas Babosas, ali bem perto. “Não sabem o que fazem”, resmungava quem os preferia mais perto. Às 17 e 27, a cunhada (na casa ao lado), foi mandada sair. Tinham muita água – 194 000 litros de reserva, no poço. “Vamos dar luta”, prometia o irmão, mostrando a foto de uma equipa firme e preparada. A última mensagem aterrou no chat às 17 e 52. Seguiu-se um longo silêncio, pesado para quem aguarda notícias. Uma angústia enorme para quem não sabe dos seus. A expectativa… o nervosismo. A fé em Deus, na bondade da Mãe Natureza, nos homens – nos nossos homens, amigos e familiares, deixados à sua sorte.
Tic… tac… tic… tac… o tempo que não passa. As notícias que não chegam. Tac… tic… tac… Os ouvidos colados às vozes da rádio… Tic… O fumo a crescer a olhos vistos da cidade do Funchal. Tac… tic… tac… até às 20 e 14. Foi o regresso ao chat. “Fugimos de casa. Julgo que ardeu”.
Durante todo este tempo, no Monte, houve tudo menos silêncio. Eram perto das 18 horas quando começou. Primeiro foi o barulho – “parece que o fogo ganha voz própria… vvvvvvv”, relata Pedro, no meio de um cenário desolador. Depois, foi o calor. “70? 80 graus?” A seguir, “gritos vindos de cima [o vento soprava de nordeste], em todos os sentidos”. Na rua, o movimento, atabalhoado. Carros, condutores a gritar “não tenho travões!” e a ouvirem “põe primeira e segue!”, malas, crianças, animais, tudo fugia rua abaixo. O vento tinha rodado. No terreno de Pedro, a equipa separou-se, como planeado. De cima, Pedro viu “um carvalho e dois e três – os estalos dos eucaliptos, pá! pá! pá! pá! – e de repente era uma parede de fogo”. As chamas consumiam tudo. Pinheiros e castanheiros centenários. As acácias, bonitas, espécies infestantes e altamente inflamáveis, foram-se num instante. Pedro “tinha óculos, chapéu e uma t-shirt molhada na cara”, mas mesmo assim, a cinza chegava-lhe aos olhos. A pele “como que queimava”. “Parecia uma cena do Apocalipse” mas, “na altura, qualquer coisa se apodera de nós. Qualquer coisa entre a euforia de combater o monstro e o espírito de sobrevivência. Tudo o que se faz – ou que eu fiz – é puramente intuitivo, instintivo. Fica-se como que possuído”, conta a posteriori, de olhar triste.
Não sabe quanto tempo durou a sua visita ao inferno – ou a passagem do inferno pelo seu terreno. “Meia hora? Três quartos de hora? Durou o que se aguentou!” Pensou sempre que tinha “mais uns minutos, mais um tempo”. Até que viu a casa “cercada em três frentes. Estava tudo em chamas”. De mangueira em punho (agora calcinada), chamando nomes feios ao inimigo, sentiu um impacto no braço direito – era um bocado de um castanheiro em brasa. “Foi aí que decidi: estou a ser louco”. Era tempo de ir embora. Pegou naqueles que se haviam juntado para o ajudar, meteu-os nos carros (estacionados já fora do terreno) e pôs o pé no acelerador, sem se aperceber que o irmão, no terreno ao lado, tomara a mesma decisão, à mesma hora. A 500 metros de altitude, desceram a toda a velocidade até ao nível do mar, movidos pelo “espírito de sobrevivência e pela sede”. Os primos ainda pararam, para salvar uma cabra presa, no meio do caminho em chamas. Pedro parou quando uma ambulância impedia que seguissem caminho. Chegaram a sair do carro e dar corda aos sapatos, mas a ambulância seguiu e voltaram à encosta para recuperar os carros.
Mergulhado no fumo, Pedro leva um encontrão e a caixinha que trazia no bolso – a única coisa que quisera ter consigo, se tudo se perdesse – caiu. Viu as libras oferecidas pela avó todas espalhadas, ao Deus dará. Pedro agachou-se. Tinha de as levar. “Vai morrer!!!”, ouviu. Mas tinha de as levar. Era o que lhe restava. Apalpou o chão, “a ferver”, e recolheu-as uma a uma. Só depois seguiu, entre duas paredes de fogo.
Chegou ao mar e chorou. E encharcou-se na água que não lhe chegara para combater o fogo.
Duas ou três horas depois, novo pedido de ajuda: o fogo insistia e voltara à unidade hoteleira da família. “Fui lá combater [também] esse”. Venceu-o, mas já com outro espírito. O dia mudara-o. “A certo ponto, tudo se torna quase banal. Instala-se um certo desapego. Vi uma casa a arder – os sofás, a cozinha… – e fiquei a olhar… Instala-se o desapego”.
Só à noite, bem tarde, regressou a casa. Foi com o irmão e um cunhado. Um monte de lenha, em brasa, ameaçava a habitação vizinha. Apagaram-no, limparam-no, e seguiram em romaria terreno adentro. Passaram a noite naquilo, a fazer rondas, a ver os estragos e a tentar garantir que o fogo não conseguiria voltar. O risco era mínimo, acredita. O Apocalipse tinha dado lugar a um cenário lunar. Não havia mais nada para arder. Mas a casa, essa, estava de pé. Massacrada, violentada, mas de pé.