Duas horas antes de começar a sessão solene do 25 de novembro, já Paulo Núncio andava pelos corredores do Parlamento. Espreitando para o hemiciclo, confirmou que os serviços da Assembleia da República tinham seguido a sua sugestão de decoração. Uns arranjos discretos de rosas brancas foram dispostos no púlpito e na bancada da Presidência da Assembleia. Mas essas flores, que Núncio justificava por acreditar poderem ser símbolos da “pacificação” que defende ter sido trazida pelo 25 de Novembro, tiveram de disputar a atenção com os cravos vermelhos.
A guerra das flores
Joana Mortágua, a única deputada do BE presente na sessão, trouxe cravos. Em cada um dos lugares deixados vazios à esquerda, pôs essas flores. E ainda guardou uma para entregar a Marcelo Rebelo de Sousa, quando o Presidente da República passou em frente da bancada bloquista à chegada à cerimónia. Mas houve mais cravos: à lapela de deputados socialistas que vieram à sessão e na bancada do Livre, a única da esquerda que não tinha lugares vazios, uma vez que foram muitos os eleitos pelo PS que faltaram.
Paulo Núncio, o líder da bancada do CDS, foi o primeiro a subir ao púlpito. Esta foi uma vitória do seu partido. Há 24 anos que os centristas apresentavam moções a defender que o 25 de Novembro fosse celebrado no Parlamento. Uma iniciativa que só este ano encontrou maioria, com os votos a favor de PSD, Chega e IL e abstenção do PS, curiosamente talvez o único partido que pode reclamar ter tido uma vitória nesta data histórica, com o chamado Grupo dos Nove a conseguir afastar do poder militar as alas mais à esquerda.
“Com o 25 de Abril, ganhámos a liberdade. Com o 25 de novembro, evitámos que a liberdade se perdesse”
“Com o 25 de Abril, ganhámos a liberdade. Com o 25 de novembro, evitámos que a liberdade se perdesse”, começou por defender Paulo Núncio, apresentando este dia como uma espécie de fim do PREC e derrota do PCP, apesar de os comunistas não só não terem sido ilegalizados (como pretendia a extrema-direita), como terem continuado a fazer parte do Governo de coligação que os juntava ao PPD e ao PS.
De resto, e apesar da pacificação de que Núncio falou no seu discurso, o País continuou atribulado. O Padre Max e a estudante Maria de Lurdes, duas das vítimas dos bombistas da extrema-direita, por exemplo, morreram em 1976. A constituição aprovada em 1976, com o voto contra do CDS, continuou a afirmar a via para o socialismo e para uma sociedade sem classes. E as nacionalizações prosseguiram, apesar dos saneamentos de jornalistas conotados com a esquerda e das despromoções de militares de esquerda, alguns dos quais tinham feito o 25 de Abril.
Paulo Núncio quis, contudo, demarcar-se desse passado em que a direita defendeu a ilegalização de todos os partidos à esquerda do PS. “Não se enganem. Celebramos o direito de todas as forças políticas estarem aqui, por vontade do povo. Mesmo as forças políticas que decidiram não estar aqui”, afirmou, numa alusão ao PCP.
“Novembro não se fez contra Abril”, vincou Núncio, que defende a tese de que esta data serviu para travar um golpe comunista que poderia ter feito de Portugal uma ditadura de estilo soviético, apesar das várias declarações em sentido contrário de Álvaro Cunhal, o então secretário-geral comunista que lançou o famoso “olhe que não”, quando num debate, Mário Soares acusou o PCP, precisamente, de querer levar o País para uma deriva autoritária.
“Uma coisa é ter respeito pelo 25 de Novembro, outra muito diferente é ter respeito por aquilo que estão a tentar fazer ao 25 de Novembro”
Filipa Pinto, do Livre, também encontra razões para celebrar uma data que, segundo vários relatos históricos, ajudou a travar uma guerra civil que estaria iminente, também graças às ordens que Cunhal deu aos militares afetos ao seu partido para não avançarem. “Evitou-se uma guerra civil. Não pela mão dos herdeiros do fascismo, mas pela mão de quem nos trouxe a liberdade”, declarou a deputada.
“Uma coisa é ter respeito pelo 25 de Novembro, outra muito diferente é ter respeito por aquilo que estão a tentar fazer ao 25 de Novembro”, insistiu Filipa Pinto, defendendo que seria mais interessante o Parlamento celebrar os 50 anos do voto universal, que permitiu que todas as mulheres, independentemente do seu estado civil ou de serem ou não escolarizadas, pudessem votar.
“Esta data que fez 50 anos é que nos devia ter juntado numa sessão solene”, argumentou, num discurso recheado de referências à defesa dos direitos das mulheres, mas também das pessoas LGBT e trans, desencadeando protestos particularmente ruidosos da bancada do Chega.
“A atual mistificação sobre o significado histórico do 25 de Novembro é uma manobra dos derrotados de Abril”
Também debaixo de grandes protestos do Chega, falou Joana Mortágua, que defendeu que “as palavras que a Revolução escreveu, o 25 de novembro não apagou”. E que essas palavras foram: “liberdade, democracia, socialismo.”
“A atual mistificação sobre o significado histórico do 25 de Novembro é uma manobra dos derrotados de Abril. Daqueles que, como lembrou o ex-líder parlamentar do PSD, Pacheco Pereira, em 74 e 75 eram partidários da ditadura que oprimiu os portugueses”, disse Mortágua, numa alusão às movimentações de extrema-direita que procuraram aproveitar a sublevação dos paraquedistas para fazer um contragolpe.
“Podem repetir a vossa lenda sobre o 25 de Novembro e nós continuaremos a responder com a história do 25 de Abril e com o texto da Constituição”, frisou a bloquista, lembrando a forma como o texto aprovado pela Constituinte manteve, por exemplo, a irreversibilidade das nacionalizações.
De resto, Joana Mortágua garantiu que assim que houver uma maioria de esquerda, deixará de haver uma evocação do 25 de Novembro. “Esta sessão e as que se realizarem nos próximos dois ou três anos serão lembradas no futuro como o momento folclórico de um tempo bizarro, em que o PSD e a extrema-direita se aliaram no revisionismo histórico, num exercício espúrio e sem duração na memória do País”, atirou.
“Fascismo e comunismo nunca mais”
“Fascismo e comunismo nunca mais”, gritou Rui Rocha, no final de uma intervenção, na qual o líder da IL lembrou a forma como os liberais se têm batido por fazer parte das celebrações populares do 25 de Abril, desfilando no final do cortejo que desce a Avenida da Liberdade em Lisboa, mas também como começaram a comemorar “sozinhos” o 25 de Novembro, uma data que veem como a garantia da liberdade.
“Também agora é preciso combater radicalismos em torno da verdade”, defendeu Rui Rocha, que se disse pronto a lutar contra “as políticas identitárias, a teoria da justiça social, o wokismo” que, em seu entender, “incorporam, sob a capa das boas intenções, uma deriva coletivista e inapelável: a de definir se és bom ou és mau”.
“Podem sair todos, fica mais agradável ainda”
André Ventura descreveu o País durante o PREC como “um país sem rei nem roque” e insistiu na importância de celebrar o 25 de Novembro. “Sem esquecermos o 25 de Abril, este é o verdadeiro dia da liberdade de Portugal”, afirmou Ventura, num discurso que aproveitou para tentar associar os dados revelados esta segunda-feira sobre o número de violações ao que considera ser uma “imigração descontrolada”, uma relação que não é possível de confirmar através de nenhum relatório ou estatística, havendo pelo contrário vários dados que mostram que na maior parte dos casos as mulheres são vítimas de pessoas que lhes são muito próximas, como os seus próprios companheiros.
Esta passagem do discurso do líder do Chega fez mais alguns deputados do PS abandonarem a sala. “Podem sair todos, fica mais agradável ainda”, reagiu Ventura do púlpito.
“O 25 de Novembro não foi uma vitória da direita sobre a esquerda”
A Pedro Delgado Alves coube a defesa do 25 de Novembro como uma data na qual o PS foi central, mas que apesar disso nunca teve a iniciativa de celebrar no Parlamento, tendo mesmo Mário Soares achado por bem acabar com as cerimónias militares evocativas da data, precisamente por entender que era um momento histórico divisivo.
“O 25 de Novembro não foi uma vitória da direita sobre a esquerda, foi uma vitória da esquerda democrática do Portugal de Abril, militar e civil”, começou por dizer Delgado Alves, que acredita que “o 25 de Novembro não só repôs o espírito e o programa do 25 de Abril, como também impediu as tentações revanchistas da direita radical”.
“Os elementos da direita extremista e radical que pretendiam aproveitar para erradicar parte da esquerda da vida política nacional fazem parte inequivocamente parte dos derrotados”, afirmou, com a promessa de que os socialistas não ajudarão ao apagamento da revolução que fez cair a ditadura. “Não viraremos Novembro contra Abril”, disse, lembrando como o próprio General Ramalho Eanes, um dos protagonistas deste dia (que foi, aliás, várias vezes ovacionado pelos deputados), chegou a dizer que o 25 de Novembro não era para ser celebrado, mas sim estudado, analisado e debatido.
“O 25 de Novembro cumpriu Abril”
“Nem todos os representantes do povo estão presentes nesta cerimónia. Fazem mal”, declarou Miguel Guimarães, o deputado escolhido pelo PSD para discursar na cerimónia. Para Guimarães, esta data “é a continuação do 25 de Abril” e “o 25 de Novembro cumpriu Abril”.
“Muito obrigado, senhor general Ramalho Eanes por ter protegido a liberdade e a democracia e nos ter devolvido a esperança de viver num mundo melhor”, agradeceu, provocando uma das várias ovações de que foi alvo o antigo Presidente da República que, ao contrário de Vasco Lourenço (outro dos protagonistas do 25 de novembro), foi ao Parlamento assistir à cerimónia.
Depois de vários momentos crispados, o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, e o Presidente da República, tentaram fazer discursos pacificadores.
“O 25 de Abril não é desvalorizável, não é equiparável, não é substituível”, garantiu Aguiar-Branco, antes de Marcelo ter dado uma verdadeira aula de História, que assumiu ter tentado que fosse “o mais objetiva possível”.