Bastou uma proposta da Polícia Judiciária (PJ), pedindo a realização de buscas à Câmara Municipal de Lisboa (CML) e à sociedade de advogados Linklaters, para a investigação sobre os contratos entre a autarquia e o escritório de advogados de Pedro Siza Vieira, antigo ministro da Economia, sair definitivamente das suas mãos e, durante três anos, ter ficado exclusivamente na secretária de uma procuradora do Ministério Público (MP). O caso acabaria por ser arquivado, em novembro deste ano, com a magistrada Leonor Cardigo a referir que, “apesar das diligências efetuadas”, não foram recolhidos “outros meios de prova que permitam salvaguardar a tese de que houve intenção de beneficiar a Linklaters”.
Nos últimos cinco anos (o inquérito foi formalmente aberto em finais de 2018), procurou-se apurar se um conjunto de ajustes diretos feitos pela autarquia de Lisboa, entre 2014 a 2016, à Linklaters configuravam eventuais crimes de participação económica em negócio ou prevaricação. Em causa estava um pouco mais de milhão de euros repartidos por vários contratos de prestação de serviços jurídicos, relacionados com a extinção da EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa) e com os vários processos judiciais, envolvendo a Bragaparques do empresário Domingos Névoa.
Num sucinto relatório intercalar de de 22 de junho de 2020 – com a pandemia paralisar o País – a Polícia Judiciária identificou os contratos em causa, assim como, por parte da autarquia, os responsáveis pela adjudicação dos mesmos: Duarte Cordeiro e Graça Fonseca, então secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e ministra da Cultura, respetivamente.
À época, a investigação, referiu a inspetora Ana Bernardo – de acordo com os elementos do processo, consultados pela VISÃO – carecia de “densificação probatória”, que permitisse “cabalmente esclarecer a actualidade denunciada e o grau de responsabilidade dos seus autores”. Daí, propôs à procuradora do Ministério Público, “visando a recolha integral de elementos probatórios que produzam efeito útil e permitam o cabal esclarecimento”, a “emissão dos competentes mandados de busca e apreensão, com o fito de recolha de toda a documentação relativa às contratações por ajuste direto”.
Por “documentação”, a inspetora da Judiciária referia-se não só à “formal”, mas também à “informal”. E pretendia, igualmente, recolher elementos de “dados informáticos e de correio eletrónico conexos com as negociações subjacentes àqueles ajustes”. As propostas para as buscas incidiam no Departamento de Contratação Pública da CML e na sociedade de advogado LinkLaters.
Nas páginas do processo que se seguem a esta proposta, não existe, por parte do Ministério Público, qualquer tipo de referência à mesma, nem concordando, nem discordando. Simplesmente, como se constata, o MP fez-lhe “orelhas moucas”, chamando a si a investigação e pedindo ao Tribunal de Contas a nomeação de um técnico “para coadjuvar a investigação, dada a complexidade e tecnicidade da matéria”.
E o que estava em causa? A 23 de maio de 2013, a autarquia contratou a “Linklaters” para “apoio jurídico ao município no âmbito do processo de dissolução da EPUL”. Valor: 70 mil euros. No dia seguinte, a antiga empresa pública de habitação celebrou com o mesmo escritório uma “contratação de uma prestação de serviços de consultadoria jurídica no cenário de dissolução da EPUL”. Valor: 120 mil euros. A EPUL voltaria a contratar a Linklaters em dezembro de 2014, por 75 mil euros, para a prestação de serviços jurídicos num processo cível que opunha a empresa municipal à sociedade de construção “Bernardino Gomes”.
A 21 de dezembro de 2015, Duarte Cordeiro e Pedro Siza Vieira assinaram um primeiro contrato para a “prestação de serviços de patrocínio forense, no âmbito do processo respeitante ao Tribunal Arbitral/Parque Mayer”. Valor 73600 euros+16928 euros (IVA), num total de 90528 euros. Um acordo que deveria vigorar “até à decisão proferida em primeira instância sobre a matéria objeto deste processo”. Nove meses mais tarde 8 setembro 2016), as partes rubricaram um “adicional ao contrato de 2016), uma espécie de “trabalhos a mais” frequente nas obras públicas, que apresentou mais uma despesa de 28851+6635 euros (IVA). Este acordo já detalhava os trabalhos da sociedade de advogados: “análise e pronúncias processuais”; “preparação adicional das sessões de esclarecimentos periciais e das sessões de inquirição de testemunhas”.
Em outubro de 2016, a Câmara de Lisboa perdeu a acção no tribunal arbitral, o que terá motivado, logo a 2 de novembro de 2016, novo ajuste direto à Linklaters: 75520+17346 euros (IVA) para “prestação de serviços a mais de patrocínio forense”, sempre no âmbito do mesmo processo arbitral com a Bragaparques: “Análise exaustiva do processo de anulação da primeira arbitragem”; “análise exaustiva” de um processo crime sobre a mesma matéria, entre outras tarefas.
No mês de dezembro de 2016, Linklaters e autarquia celebraram – através dos mesmo intervenientes, Duarte Cordeiro e Pedro Siza Vieira – mais três contratos de prestação de serviços por ajuste direto. O primeiro, rubricado no dia 20, previu o pagamento de 106395 euros (86500+19895 IVA) para “serviços de patrocínio forense, no âmbito do recurso da decisão arbitral”, sem especificar quais as tarefas que seriam desempenhadas pelo prestador de serviços. O segundo acordo, com data de 30 de dezembro, estipulou o pagamento de 30750 euros (25000+5750 IVA) para, genericamente, o “patrocínio forense para a defesa do Município de Lisboa no recurso interposto pela Bragaparques”.
Por fim, no mesmo dia 30 de dezembro de 2016, novo contrato: 67650 euros (55000+12650 IVA), cujo objeto passava pela “prestação de serviços de patrocínio forense” na mesma acção abritral e pelo “recurso jurisdicional da decisão que venha a decair” sobre a acção de anulação.
Ligação pessoal a António Costa
Entre finais de 2020 e novembro de 2023, o Ministério Público recolheu vária documentação – junto da autarquia, Tribunal de Contas e Inspecção Geral de Finanças – e ouviu 10 testemunhas, entre as quais Pedro Siza Vieira.
O antigo ministro, recorde-se, após este caso ter sido tornado público, em outubro do ano passado, escreveu uma detalhada carta à então diretora do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, Fernanda Pêgo, dando conta do trabalho prestado pela Linklaters para a autarquia de Lisboa, as verbas cobradas, manifestando a sua “total e imediata disponibilidade para a prestação de qualquer esclarecimento”. Quando foi inquirisdo como testemunha, relatou todo o trabalho realizado pela sociedade de advogados, assim como descreveu a complexidade dos assuntos em cima da mesa.
Helena Cabral Abreu, diretora do departamento jurídico da CML, foi outra das testemunhas ouvidas, confirmando a necessidade de autarquia recorrer a serviços externos de advocacia para casos complexos, como os que estavam em causa com a contratação da Linklaters: a dissolução da EPUL e o caso “Bragaparques”, o qual envolveu vários processos nos tribunais administrativos e arbitrais.
Em 2014, com António Costa na presidência, relatou a testemunha, a Câmara era representada pela sociedade de advogados “Garrigues”. “Não obstante, à margem dos processos judiciais, António Costa, fazendo-se acompanhar de Pedro Siza Vieira iniciou as negociações tendentes à realização de uma transacção judicial” com Domingos Névoa. Ou seja, Siza Vieira começou a colaborar com Costa antes mesmo da ligação ao seu escritório ter sido formalizada.
“A circunstância de os trabalho terem tido início em data anterior à da celebração dos contratos não configura, a nosso ver, qualquer violação do direito, especialmente quando tal intervenção teve por origem pedidos pessoais do à data presidente da câmara e considerando a urgência na resolução das situações em causa e a qualidade técnica e especialização dos advogados da sociedade” Linklaters, concluiu a procuradora Leonor Cardigo no despacho de arquivamento, consultado pela VISÃO.
Quanto à execução dos contratos, sublinhou a magistrada do MP, “não existem dúvidas” que “os trabalhos foram realizados”. Para haver crime, prosseguiu, “cumpriria obter prova que os decisores políticos agiram com intenção de favorecer a Linklaters e que atuaram com intenção de obter vantagem, em prejuízo dos interesses que deveriam proteger”. O que não se verificou, quer nos casos da EPUL, quer na gestão jurídica do dossiê Bragaparques, segundo o Ministério Público.