Vila Camões. Assim mesmo. Construído ao estilo “português suave”, modelo arquitetónico que marcou um período do Estado Novo, foi o primeiro condomínio de casas de Curitiba (Brasil). Carregadinho de moradias e detalhes de inspiração nacional, das cantarias aos azulejos, o projeto foi idealizado pelo famoso milionário Lúcio Tomé Feteira e saiu do talento do arquiteto modernista brasileiro Ayrton Lolô Cornelsen.
Pensada para pessoas próximas do industrial de Vieira de Leiria que, descontentes com a revolução de 1974, pretendiam radicar-se no Brasil, acabou tendo outro destino. “A ideia inicial era essa, um refúgio para os amigos, mas transformou-se num empreendimento imobiliário comum”, garantiu o próprio Lolô Cornelsen numa entrevista concedida por escrito à VISÃO em 2010, até hoje inédita.
Aos 94 anos, o arquiteto voltou recentemente a Vila Camões, no âmbito de uma reportagem do diário Gazeta do Povo, principal jornal do Estado do Paraná. Aí puxou o lustro a memórias relacionadas com a construção daquele conjunto residencial. À época, a encomenda partiu da empresa portuguesa Comassa, que pretendia uma série de 22 casas em boulevard. Uma boa quantidade dos materiais seguiu daqui para o Brasil.
Feteira, meu amigo
Lolô Cornelsen viveu 16 anos no nosso País.
Exilado durante os anos da ditadura militar brasileira, ele fez amizade com o milionário Lúcio Feteira em 1966, tendo também mantido uma forte relação com Fernanda Pires da Silva, a empresária presidente do Grupo Grão-Pará. Ela deu emprego no conglomerado de empresas ao antigo presidente brasileiro Juscelino Kubitschek, amigo do arquiteto e do próprio Feteira, que o financiou. Lolô projetou diversos empreendimentos turísticos e desportivos em Portugal, entre os quais o autódromo do Estoril, onde Feteira tinha terrenos, e o hotel Atlantis Holliday Inn, na Madeira, que teria a primeira piscina olímpica nacional e viria a ser implodido em 2000 na sequência da construção do novo aeroporto. “Os melhores anos da minha vida foram em Portugal. O País representou muito para mim”, admitiu o arquiteto brasileiro à VISÃO.
Cornelsen e Feteira foram unha e carne. E nem o oceano se interpôs nessa amizade. “Era uma pessoa simples, sem nenhuma extravagância, mas um fora de série. Com os amigos era um mão-aberta.”, recorda Lolô. Não se pense que a admiração era unidirecional. “Contemplar a tua obra”, escreveu Feteira a Cornelsen em 1971, “é um momento de serenidade, uma pausa a pureza e tranquilidade. É um retorno ao mundo onde os valores da simplicidade das linhas adquirem um sentido de sublimação”.Em 1972, o arquiteto propôs ao industrial a urbanização de um complexo turístico de luxo em São Bento da Lagoa, Maricá, onde Lúcio tinha fazendas e, décadas mais tarde, a 7 de dezembro de 2009, viria a ser assassinada a sua companheira e antiga secretária Rosalina Ribeiro. “Era um projeto meu, antigo. O Feteira gostou e cedeu a área que serviria principalmente para turistas portugueses que viessem para o Brasil”, explica Lolô. Mas o sonho do milionário nunca se concretizou.
Nem esse, nem a edificação de um hotel e clínica para doentes do foro mental, em Lagos, chumbada pelo Governo. “Sempre julguei que tudo tinha um limite, embora Einstein tenha um dia dito, ao ser entrevistado por um repórter do ABC, de Madrid, de que havia duas coisas que eram infinitas: «a ingratidão e a estupidez humanas»”, escreveu Lúcio Feteira na carta indignada então dirigida ao subdiretor da direção-geral dos serviços de urbanização e que Lolô Cornelsen guarda. “Representou um duro golpe para ele”, reconhece o amigo.
No Brasil, conta o arquiteto, os principais amigos de Feteira foram o ditador Getúlio Vargas, Kubitschek, Tancredo Neves (deputado federal, presidente do Brasil em 1985) e Guilhermino de Oliveira (deputado federal). “Como um grande empreendedor português, indignado com as injustiças ditatoriais de seu amado País, ele teve que buscar exílio na antiga colónia, mas jamais esqueceu suas origens”, resume Lolô. Em Portugal, além de Fernanda Pires da Silva, o industrial era “muito amigo” de António Champallimaud. Contudo, Cornelsen descreve Feteira como alguém de “ideias socialistas e totalmente contra a ditadura de Salazar”. Depois do 25 de Abril de 1974, porém, Feteira passaria a contestar o regime saído da revolução. Defenderia ex-elementos da PIDE em tribunal e faria romagens à campa do ditador, em Santa Comba Dão.
Numa coisa, porém, manteve-se coerente: assuntos de saias. “Ele era muito admirado pelas mulheres aqui no Brasil”, reconhece Cornelsen. “Corriam boatos sobre suas aventuras. Mas nada muito exagerado”.
Lúcio Tomé Feteira morreu em 2000, a dias de fazer 99 anos. O complexo habitacional de Vila Camões jamais se cumpriu como ele o idealizou. Mas as suas memórias continuam bem guardadas em Curitiba.